Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A notícia como mercadoria

De repente, surgiu na minha cabeça esta expressão: ‘Notícia como mercadoria’. Achei-a intrigante e a repeti como quem a digere, mas, agora, com espanto, vejam o sinal de exclamação no fim da frase: ‘Notícia como mercadoria!’. O que esta sentença estaria querendo me dizer? Como surgiu? De onde veio, se aparentemente não a estava procurando, já que estava silvestremente andando em meio das árvores de minha casa de campo?


De pronto, localizei sua origem e assim tornou-se mais nítido pensar no seu significado. Eu havia terminado a leitura de vários jornais e revistas (sobretudo do Rio e São Paulo). Havia lido uma reportagem sobre a nova biografia da falecida princesa Diana, na qual se analisa como ela não era tão ingênua nem santa, teve um punhado de amantes mesmo casada e sabia manipular a mídia. Ou pior, estabeleceu-se a partir dela e com ela, um jogo perigoso, ela manipulava a mídia que por sua vez a manipulava. Deu no que deu.


Havia lido também matérias sobre o mercado de arte, onde cinicamente críticos e curadores confessam participar desse jogo duplo se espostejando acriticamente na roleta do mercado. Havia lido sobre essas modelos que cobram para ir a festas, sobre esses casais de BBB que têm contrato comercial para ficarem juntos. Também li a notícia de que aquela milionária Paris Hilton – uma irresponsável (mas esperta) –, que após ser condenada por dirigir embriagada, e tendo com isto aumentado sua cotação no mercado de notícias, cobrou um milhão de dólares para dar uma entrevista na televisão e ainda foi convidada para trabalhar aí regularmente.


Enfim, essa Hilton, como Diana entendeu que ela é a notícia e que a notícia tem preço. Com isto, os meios de comunicação em todo o mundo se dispuseram a expor e a vender essa mercadoria, que também rende em termos de audiência. E perpassando os olhos criticamente pelas várias seções dos jornais, uma coisa terrível se me afigurou e já não se sabia a diferença entre os anúncios expressamente tidos como anúncios e esse outro produto difuso e perverso cultivado pela cultura chamada de pós-moderna; e algo começou a se elaborar no meu inconsciente até que surgisse aquela frase reveladora e arrepiante: ‘Notícia como mercadoria’.


Imprensa faminta


Abro um parêntesis e lembro que houve um tempo em que certas seções nos jornais eram ‘serviço’ desinteressado. O colunista citava pessoas e indicava lugares e produtos sem cobrar e receber. Estava orientando gratuitamente os leitores. Hoje podem-se contar nos dedos as colunas não manipuladas. Ainda não éramos essa sociedade das aparências, da pressa, da velocidade, onde a irresponsabilidade ética se acoplaria à irresponsabilidade estética. Por isto, se me permitem, proponho um novo par a ser desencravado para análise da ideologia de nossa época, onde houve uma perturbadora inversão.


Daquilo que era a eventual ‘irresponsabilidade ética’, passamos a cultuar a ‘ética da irresponsabilidade’ louvando e endossando os piores personagens das novelas e dos noticiários; e onde antigamente se denunciava a eventual ‘irresponsabilidade estética’ de alguns, passou-se a oficializar e a louvar a ‘estética da irresponsabilidade’, que acabou dando num tipo de arte onde a idéia de valor é renegada. Acredito que nessa inversão está a chave do enigma de nosso tempo.


Fecho o parêntesis e retomo o que disse no princípio: os personagens na mídia são mercadoria. Não só as modelos, os jogadores, mas também os artistas, a própria literatura – veja-se a FLIP, lá em Paraty – é uma mercadoria. E as coisas vão se ampliando: os escândalos diários e/ou semanais que jornais e revistas estampam são uma mercadoria. Não sei se somos mais corruptos hoje que ontem, mas antes o escândalo era, sobretudo, um fato moral e ético, não havia recebido a etiqueta de mercadoria. O escândalo como mercadoria não havia sido oficializado. Hoje necessitamos de um escândalo por semana (ou por dia?). Como se alguém gritasse para alguém no almoxarifado: ‘Como anda o estoque de escândalos? Veja lá, renove os pedidos, não podemos deixar o público na mão’.


A imprensa está sedenta, faminta, ela se alimenta de sua própria fome. E como o público, para se proteger, vai ficando insensível, então surge um fenômeno novo – o meta-escândalo, o escândalo de que já não nos escandalizamos mais com os escândalos.

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Poeta e escritor