‘Ninguém está bem, estamos todos morrendo.’ (Hilda Hist, A Obscena Senhora D).
O vergonhoso caso da senhora DC (não o ato na praia; o pedido de censura) tem que ser examinado às vistas do percurso doloroso que as luzes da liberdade fizeram para conquistar o direito de todos poderem ver tudo o que quiserem e não serem obrigados a ver nada que não queiram.
Este segundo quesito, porém, é freqüentemente omitido das reflexões, como são omitidas outras formas de censura, pois proibir não é o único recurso de quem controla. Fascismo e nazismo, por exemplo, derrotados na Segunda Guerra Mundial, esmeravam-se em obrigar a ver umas coisas enquanto proibiam de ver outras. Hoje, muito do que foi proibido ou obrigado a ser visto está no History Channel ou no Discovery.
Mas o estranho é que, numa democracia consolidada como a brasileira, a senhora DC – só no Brasil! – subjugou o Judiciário. Desta vez não foi, como era usual na ditadura militar, o Executivo que, amparado na Lei da Imprensa e na Lei de Segurança Nacional, proibiu, em ‘todo o território nacional’, como então se dizia, a exibição de ato que as pessoas, por pudor, não fazem em público. E se ela não quisesse ser vista, não o faria numa praia, que, como ruas e praças, é local público.
Espantoso não foi ela recorrer ao Judiciário. Espantoso foi ter a queixa aceita e o pedido atendido: bloquear o site YouTube no Brasil, levando nosso país, ainda que por pouco tempo, a perfilar-se ao lado de ditaduras que bloqueiam a internet, em tudo repetindo, em grande escala, o que o escritor Josué Guimarães denunciara, em delicioso estudo microscópico, num livro belíssimo: Os Tambores Silenciosos.
Curso intensivo
O romance se passa na localidade fictícia de Lagoa Branca. O prefeito consegue isolar do Rio Grande do Sul, do Brasil e do mundo o município. Não entra nem o jornal Correio do Povo e é proibido até uma ‘emissora’ de rádio de galena, feito em casa – hoje se diria home building.
O livro de Josué Guimarães, então correspondente da Folha de S.Paulo em Porto Alegre, foi proibido de deixar as gráficas da Editora Globo, mas esta é outra história em que, ao contrário do que aconteceu agora com o YouTube, a liberdade venceu. Como se sabe, desta vez a liberdade perdeu – não a guerra, mas uma batalha.
A senhora DC bem que viu, depois do malfeito, a trapalhada em que se metera. Dali a uma desculpa esfarrapada era um pulinho e ela o deu, saltitante: não pedira a censura; tinha sido o namorado! Provavelmente fez a declaração já preocupada com as repercussões devastadoras sobre um público que é fiel a seu programa na MTV.
Por fim, DC não é culpada de nada, pois ignorância não é crime. Mas o juiz que deu sentença favorável ao pedido da descuidada senhora, que faz amor na praia achando que ninguém vai ver ou filmar o que ela faz aos olhos do público, principalmente em se tratando da personalidade conhecida que é, merece um cursinho intensivo de novas tecnologias, com destaque para a internet.
‘Massa informe’
Já seria deplorável tirar o filminho do ar. Mas houve coisa pior. Na impossibilidade tecnológica de fazer isso, o YouTube foi proibido de entrar na internet do Brasil! E recuamos ao tempo em que um ‘coronel’ do sertão – sem nunca ter servido um dia sequer como recruta, aliás – mandava empastelar o jornal do município onde ele era o poder local, o manda-chuva.
Grande tristeza é o ato de censura ter sido ordenado por um juiz. Este é o lado mais calamitoso do tropeço que envergonhou o Brasil no mundo.
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PS: Para os mais jovens: empastelar, segundo o Dicionário Michaelis, é ‘confundir, reduzir a massa informe, amontoar confusamente (linhas ou caracteres tipográficos), destruir as oficinas de um jornal, revista etc., geralmente por motivos políticos’.
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Escritor, doutor em Letras pela USP, professor da Universidade Estácio de Sá, onde dirige o Instituto da Palavra; www.deonisio.com.br