Sim, as coisas mudam e naturalmente às vezes até para melhor. Concordo com o Ricardo Kotscho em sua coluna no site NoMínimo, de sexta-feira (13/1), intitulada ‘Muito bem desempregado’. Sorte dele, diria toda uma categoria profissional.
Entretanto, nas relações de trabalho do Brasil – e no caso em questão, da categoria dos jornalistas – a mudança para melhor pode ter sido só para uns poucos. Ricardo diz que antigamente…
‘…todo mundo queria um emprego fixo, carteira assinada, crachá, plano de saúde e, se possível, vaga no estacionamento da empresa. Sem isso, ninguém poderia estar bem na vida’.
Mas, hoje, tudo mudou:
‘Cada vez encontro mais amigos que vivem sem carteira assinada e não querem nem ouvir falar em voltar a usar um crachá. Nos últimos anos, com a crise financeira enfrentada pelas empresas de mídia, as redações murcharam, é verdade, o número de vagas diminuiu, estimulou-se a terceirização, mas em muitos casos percebo que não se trata de uma questão de falta de oportunidade de voltar ao mercado de trabalho e, sim, de uma opção pessoal’.
Ele também percebe que…
‘…o expediente da maioria das revistas nas bancas não traz mais do que três ou quatro nomes de jornalistas fixos – os outros todos são de colaboradores.
E constata que…
‘são cada vez mais numerosos os jornalistas da minha geração que trabalham em casa, fazem seus próprios horários, só andam de bermudas e chinelos, e não querem saber de outra vida. De tanto ver meus amigos aderindo ao trabalho doméstico, resolvi adotar o mesmo esquema quando voltei para São Paulo, no final de 2004, mas confesso que, no começo, fiquei muito inseguro’.
Hoje, Kotscho descobriu que…
‘…o grande barato é aprender a viver com menos. Não tem nada melhor do que ser dono do seu tempo, encontrar a agenda com cada vez menos compromissos, em sua maioria agradáveis, como almoçar ou jantar com amigos, entregar um texto que te deu prazer de escrever, fazer uma palestra sobre um assunto que te atrai’.
Claro, não há nada melhor. E o autor cita o exemplo de Ricardo Noblat e diz que jornalistas ‘menos votados e famosos’ também seguem o mesmo caminho.
Praxe antiga
O espírito do texto me lembrou um quadro do dinossáurico programa humorístico Balança, mas não cai, do século passado: o primo rico invejava a simplicidade com que vivia o pobre e esfarrapado parente…
Pois tudo depende do degrau em que se está e com que instrumentos se observa. Realmente, esta ‘opção’ reflete o melhor dos mundos para quem não tem mais que criar filhos, pagar escola, roupa, médico, transporte, etc e tal e/ou ser arrimo de família, cuidar de pais idosos e da família. Para quem não tem herança e precisa viver da sua força de trabalho, expressão esta muito antiga e coisa tão fora de moda em certos vocabulários. Para quem pode ‘optar’ por trabalhar em casa de bermuda e chinelão.
E tenho a certeza de que não são muitos esses casos, nem apenas jornalistas da geração de Kotscho.
O bordão minimalista less is more pode ser muito bem empregado em artes plásticas, fashion weeks, livros de auto-ajuda, e confesso que eu mesma tenho muita simpatia por ele, sob outro ponto de vista – o que os budistas chamariam de Shizen, naturalidade. Mas esta é uma outra história.
Apenas ressalto que neste século 21 de cambalachos e flexibilização de tudo o que incomoda o mercado, o bordão não pode ser aplicado ao caso dos trabalhadores a não ser sob forma de cinismo.
Quero crer que não tenha sido essa a intenção de Kotscho. Creio que a sua permanência durante alguns anos na ilha da fantasia, a falta de contato com a categoria como tínhamos antigamente, nas assembléias sindicais, além da ausência absoluta, atualmente, de um sindicato de jornalistas em São Paulo, e de alguma instância que defenda a categoria, tudo isso o tenha levado a conclusões equivocadas.
Somos da mesma geração, e eu também, na maior parte do tempo, trabalho em casa. Poderia dizer que também ‘optei’, mas não uso esse verbo. Eu e todos os colegas que somos ‘pessoas jurídicas’ não vivemos num mar de rosas, embora demos graças aos céus por não sermos mais obrigados a enfrentar o tronco durante mais de 12 horas, assistindo a cenas grotescas e explícitas de todos os níveis nas redações. Entretanto, nunca sabemos o dia de amanhã.
E não são apenas os da nossa geração, já com 20 ou 30 anos de profissão. Mas profissionais de 20 ou 30 anos de idade, também obrigados a se tornarem pessoas jurídicas, free lancers, usando seu próprio computador, seu telefone, a infra-estrutura de sua casa, seu carro, sem nenhum reembolso, ao contrário do que era praxe antigamente. Gostariam, sim, de ter ‘emprego fixo, carteira assinada, plano de saúde’. Mas foram obrigados a ‘optar’.
No mesmo barco
Há muitas histórias exemplares da situação. Uma dessas colegas, de 20 e poucos anos, disse dia desses: ‘Acho que vou conseguir comprar uma casa, mas dentro de uns 40 anos’. Outro, pai e avô, desempregado, tem a família sustentada pela filha. Outro, idem, com a mulher que sofre de problemas mentais, também é sustentado pela filha. E outro mais, de 30 e poucos anos, desistiu da profissão e pretende dedicar-se ao comércio.Todos profissionais da maior correção e competência.
O conjunto de histórias terríveis das vidas de jornalistas é muito grande. Como sabemos, trata-se de uma profissão sem plano de carreira. Há alguns poucos anos, somou-se à tragédia dessa categoria a falência do plano de saúde eleitoreiro mantida pelo Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, deixando ao léu pessoas com operação de câncer marcada, pacientes idosos sem hospitalização – todos, como disse o presidente da entidade, ‘encaminhados para o INSS’.
É muito bom, sim, caro Ricardo, podermos optar. É o que ocorreria em algum idílico país civilizado, que respeitasse os trabalhadores. Não neste país, onde não só os jornalistas são obrigados a ‘optar’ pela informalidade: jovens e nem tão jovens, todos no mesmo barco, vagam em águas turvas e sem destino.
******
Jornalista e professora de jornalismo