Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A ordem mundial de Ahmadinejad

‘Alguma coisa está fora da ordem, fora da nova ordem mundial’, já dizia Caetano Veloso em seu disco Circuladô, de 1991. Dezoito anos depois, a constatação do baiano veste como uma luva a persona e o comportamento de Mahmoud Ahmadinejad, presidente do Irã desde 2005. Para George W. Bush, ex-presidente dos Estados Unidos, Ahmadinejad é parte do ‘eixo do mal’. Os jornais freqüentemente o classificam como controverso e polêmico, principalmente por delirantes opiniões dizendo que o Holocausto é um mito, ao mesmo tempo em que afirma que as nações ocidentais impediram as investigações (reconhecendo então como um fato histórico) durante 60 anos, para manter o domínio sobre outras nações. Sem dúvida, essa contradição o credencia para a imagem de lunático. Mas, há um aspecto em sua postura política que segue ignorada pela mídia: o contraponto. Esse papel não é facilmente assimilado pelo mundo ocidental e tem sido negligenciado nas coberturas jornalísticas.

Em 20 de abril, durante uma conferência sobre racismo promovida pela Organização das Nações Unidas (ONU), Ahmadinejad criticou abertamente a violência de Israel sobre o povo palestino e disparou rajadas: ‘Depois do final da Segunda Guerra Mundial, os aliados recorreram à agressão militar para tirar as terras de uma nação inteira com o pretexto do sofrimento judeu (…). Enviaram imigrantes da Europa e dos Estados Unidos para estabelecer um governo racista na Palestina ocupada.’

Dois pesos, duas medidas

Abordou também a intervenção militar internacional, liderada pelos EUA, no Afeganistão e Iraque, perguntando se as ações trouxeram paz e prosperidade a esses povos. Afirmou, ainda, que o Conselho de Segurança da ONU sempre ‘recebeu com o silêncio os crimes desse regime (israelense), como os recentes bombardeios contra civis em Gaza’. Durante sua fala na tribuna, foram ouvidas vaias e aplausos, enquanto representantes da União Européia (UE) saíram da sala. O discurso provocou indignação em Israel.

Eis aí o contraponto. Qual chefe de Estado teve cara-de-pau suficiente para dizer que as guerras no Iraque e Afeganistão só estão levando mais desgraça àqueles países? Qual chefe de Estado teve coragem para denunciar o real silêncio da ONU em relação aos ataques e excessos de Israel? O mesmo silêncio que se seguiu quando o Conselho de Segurança da ONU foi deliberadamente ignorado por Bush, decidindo invadir o Iraque mesmo depois da resolução contrária. Ou seja, a fala de Ahmadinejad escancara ao mundo o óbvio de que a ONU se finge de morta diante de ações bélicas americanas, mas age com rigor diante de outras. Dois pesos, duas medidas. O que a ONU fez em relação à desobediência de Bush, que iniciou uma guerra? Nada.

Opiniões que merecem atenção

Assim como o Holocausto é um fato histórico grotesco, e não pode jamais ser esquecido ou desmentido, a forma como o Estado de Israel foi criado em 1948 também o é. Afinal, é fruto de um acordo unilateral, já que os palestinos nunca concordaram com os termos e acabaram sendo expulsos aos milhares para qualquer outro lugar, gerando uma diáspora. Num conflito como o que há entre esses povos, certamente há crimes de guerra e abusos de ambos os lados, mas como a Palestina não é um país, suas ações militares são tidas como guerrilheiras e terroristas, enquanto Israel, como Estado membro da ONU, utiliza seu exército legitimado, amplamente equipado e apoiado pelos Estados Unidos, o que acaba desequilibrando bastante os combates.

Quando as críticas são para Israel, elas não vêm de outros Estados, talvez por falta de coragem, mas vêm de entidades como a Anistia Internacional e Human Rights Watch, também ignoradas. Ahmadinejad, nesse contexto, é uma voz corajosa e dissonante que, apesar dos delírios, às vezes acerta o alvo da crítica. Num mundo globalizado, cada vez menos existe esse maniqueísmo que Bush quis imprimir em Ahmadinejad, mas que a mídia ocidental abraçou sem questionar. Ninguém é 100% bom, ou 100% mau. O próprio Hitler praticamente eliminou o desemprego na Alemanha dos anos 1930, o que, em si, é bom, ou não é? É difícil reconhecermos que, mesmo de um líder barbudo e radical como Ahmadinejad, podem surgir opiniões que mereçam, sim, atenção positiva dos jornais. Afinal, se o mundo precisa dele para lembrar os desmandos de outros países, então, de fato, ‘alguma coisa está fora da ordem mundial’.

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Jornalista, São Paulo, SP