O prodigioso talento brasileiro para a propaganda produziu, acho que na década de oitenta, um criativo comercial para a TV em que um filho tentava convencer sua mãe recitando o mantra ‘compre batom, seu filho merece batom’. A mensagem do velho comercial de chocolate continua atual e personifica muito bem o mercantilismo hipnótico que tomou conta da televisão. Estima-se que a publicidade ocupe hoje mais de 25% do horário diário da televisão brasileira.
Liga-se a TV e logo começam as ofertas. Quase sempre algo de que não precisamos. Dietas, alimentos, comportamentos, modas e manias; quase tudo tem espaço na prateleira virtual do vídeo. E a telinha tem se revelado um excelente balcão. O departamento comercial das emissoras trabalha a todo vapor. Além do fetiche da mercadoria, a publicidade atenta agora para o fetiche do espectador. Passamos de público-telespectador a público-freguês, público-consumidor. Audiência boa é a que tem cartão de crédito.
Feira de Caruaru
Na filosofia do telemercado, a massa de consumidores ‘precisa’ e ‘quer’ de tudo. A heroína da novela das oito ilustra subliminarmente os benefícios da cosmética e a moda da última estação. A rainha dos baixinhos, no melhor estilo feira de Caruaru, vende de tudo. Sandália com seu nome, tênis com seu cheiro e uma infinidade de bugigangas que lobotomizam nossas crianças e infernizam os pais.
Uma outra majestade, não menos propagandista, o rei Pelé, jura de pés juntos que nossos problemas acabarão com a aquisição de um aparelho de ginástica. Poucas são as celebridades – no sentido lato pós-Big Brother – que não fazem ‘bico’ como camelô eletrônico. Se o padre vende CD’s por que a Luana Piovani não deve oferecer havaianas?
Por falar em sacerdotes, nas chamadas redes religiosas, padres e pastores se esgoelam para transformar a palavra de Deus em estratégia de vendas. O balcão disfarçado de altar oferece desde viagens à Terra Santa, CDs e DVDs, a relicários com água benta. O mercado sacrossanto, segundo cálculos do Instituto Brasileiro de Marketing Católico, movimenta cerca de R$ 3 bilhões por ano. É o proselitismo usurário que vê em cada fiel um consumidor em potencial.
Como os velhos reclames já não dão conta da demanda de anunciantes ávidos por um espaçozinho para oferecer suas guloseimas, o merchandising é acionado com força total. O artista está cantando e lá vem a paradinha para oferecer o melhor DVD do mercado. O ator está dando entrevista e, de repente, outra ‘dica’ da infame sopa que emagrece. Exibidos à exaustão, os ‘merchans’ se multiplicam, engordando contas bancárias e entediando o telespectador.
Originalmente o merchandising trata da aparição de um produto de forma dissimulada, não declarada; o que não é nenhuma novidade. Já na década de 70, Sônia Braga agitava as danceterias de ‘Dancin’Days’ vestida numa providencial calça jeans Staroup. No vácuo da ausência de regulamentação, as inserções foram ficando cada vez mais inconvenientes, e o que temos hoje é um imenso mercado livre, só encontrando similar na Internet.
Primeiros passos
Mas o mais grave nessa mercantilização não é o fato de a TV aborrecer, ao invés de entreter. A televisão é um serviço público delegado a concessionários privados e, segundo a Constituição Federal (art. 221), sua programação deve dar preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas. Objetivos que têm sido suplantados sistematicamente pelos que controlam a comunicação no País; gerindo o setor com a intenção única de obter lucro, seja ele financeiro ou político.
O telespectador brasileiro, que em sua maioria desconhece esse caráter de serviço público da radiodifusão, acaba aceitando a avalanche de publicidade como algo natural. Concepção provocada, em parte, pela ausência de uma legislação que fixe limites para a propaganda. À mercê da auto-regulamentação, a publicidade na TV brasileira acabou submetida unicamente às regras do mercado, à lei da oferta e da procura. Mas em países onde a publicidade é regulamentada a coisa não é tão frouxa assim.
Na Alemanha, por exemplo, nos canais públicos, o tempo de publicidade é rigidamente fixado em 90 minutos por dia útil; nas redes privadas, o limite é de 20% de publicidade para cada hora de transmissão. No Japão esse limite é de 18% para o setor privado. Nas tevês públicas a proibição é total. Já a legislação francesa não permite publicidade de medicamentos que exigem receita média, nem de oferta de emprego.
Aqui no Brasil, os primeiros passos para uma regulamentação do setor foram dados recentemente. O foco, até o momento, é o público infantil. Projeto de lei de autoria da deputada Maria do Carmo Lara (PT-MG) propõe a proibição de publicidade infantil das 7h às 21h e veta também o uso de apresentadores e personagens infantis nas propagandas. A matéria é um substitutivo à proposta do Deputado Luiz Carlos Hauly (PSDB/PR), bem mais radical, que previa o fim da publicidade destinada à venda de produtos infantis na TV.
Tapando o sol com a peneira
O projeto da deputada requer um embate pesado contra as leis de mercado. Reflexo disso foram as novas normas éticas instituídas pelo Conar (Conselho Nacional de Auto-Regulamentação Publicitária) a partir de setembro deste ano. Para tapar o sol com a peneira e abortar qualquer tentativa de regulamentação do setor, o órgão criou um conjunto de recomendações meramente indicativas para a publicidade de produtos destinados a crianças e adolescentes e anúncios de alimentos e refrigerantes. O código recomenda que os anúncios não usem expressões do tipo ‘Peça pra mamãe comprar…’ e ‘Faça como eu, use…’.
O código tenta evitar que a TV brasileira trilhe o caminho de países como Grécia, onde a publicidade de brinquedos é proibida das 7h às 22h, ou Noruega e Suécia, que proíbem qualquer propaganda direcionada a crianças menores de 12 anos. A estratégia para evitar mudanças efetivas incluiu, à época, um editorial publicado pela Folha de S. Paulo intitulado ‘Ataque à publicidade’, onde a empresa defende a orgia publicitária com unhas e dentes.
No texto, o jornal faz uso dos velhos argumentos acionados toda vez que o tema regulamentação vem à baila. Proteção à liberdade de expressão e queda ainda maior na qualidade da programação, devido à redução da receita das emissoras. ‘Não se enfrentam mosquitos com tiros de canhão. A proscrição da propaganda parece um remédio adequado para combater o uso de drogas, mas excessivo para lidar com os pequenos abusos cometidos por publicitários sem imaginação e por programadores de mídia mais afoitos’, apela a Folha.
De todo jeito, iniciativas como o projeto da deputada petista já servem, e muito, para aquecer o debate em torno da regulamentação dos veículos de comunicação, uma sujeira cada dia mais difícil de ser varrida para debaixo do tapete. Enquanto isso, fiquemos com a precisa definição de televisão dada pelo personagem Antonio, do livro A Máquina, de Adriana Falcão, recentemente transformado em filme. Ele diz:
‘Televisão era um negócio que ficava passando umas historinhas pro povo ficar vendo. As historinhas iam acontecendo aos pedaços e de vez em quando vinham, não um, mas vários anúncios para vender coisas assim como bicicleta. A finalidade era encontrar quem quisesse comprar o que era anunciado, pois com parte do dinheiro da venda pagavam-se os tais anúncios e com parte do dinheiro dos anúncios pagava-se a feição das tais histórias, mas eles faziam as historinhas tão bem-feitas que quem olhasse assim pensava que a finalidade era essa e não aquela’.
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Jornalista, Maceió, AL; http://observatoriodatv.blig.ig.com