Lá estava a palavra japonesa tsunami posta em sossego, discreta, quietinha em sua neutralidade (nem masculina nem feminina), limitada a duas modestas linhas de definição: ‘vaga marinha volumosa, provocada por movimento de terra submarino ou erupção vulcânica’ (Houaiss), e tranqüilamente ignorada pelo grande Aurélio.
Em 26 de dezembro de 2004, porém, a tragédia, o pânico, as mortes. A palavra invadiu todas as praias, todos os meios de comunicação, as referências na web multiplicaram-se, deixaram no chinelo outras revoltas naturais, como os já ultrapassados hurricane e earthquake.
Tsunami não é mero maremoto… A sua força destrutiva reside na origem remota, vinda do fundo do oriente distante, do fundo mais fundo dos domínios de Netuno. Diante do tsunami ficamos todos boquiabertos, desorientados, encurralados pela palavra invasiva, afogados no horror.
Tsunami tornou-se sinônimo de acontecimento inesperado e avassalador. O deputado Severino Cavalcanti, por exemplo, com sua inesperada vitória na Câmara dos Deputados, tornou-se o ‘tsunami brasileiro’, mas outros vieram e virão, na fala popular, no marketing ou no jornalismo.
Ondas e modas
‘Uma onda de protestos’, por exemplo, já se transformou em ‘tsunami de protestos’. Na Folha de S.Paulo de 9 de fevereiro, lê-se num artigo sobre política nacional: ‘Para os que desembarcaram [do PT], o governo Lula representa uma espécie de tsunami que varreu 20 anos de energia social acumulada na e pela esquerda’. E o próprio presidente Lula, amante das metáforas, não fica para trás; tem afirmado que recebeu o Brasil após um tsunami.
O clichê é tão poderoso que arrasta consigo o próprio clichê: ‘um tsunami de clichês’, escreveu certo crítico de cinema, tentando ser original. Lucas Mendes, em artigo sobre a cadeia de restaurantes norte-americana Howard Johnson, não resistiu: ‘Os hamburgers são decentes mas o forte do lugar é o café da manhã, um tsunami de calorias’. Até Olavo de Carvalho, que tanto se queixa dos lugares-comuns, pisou em falso, num acesso de raiva: ‘Um tsunami de estupidez multiculturalista, esquerdista, feminista, gayzista…’
Não há como detê-lo: ‘um tsunami de forças políticas contrariadas’, ‘um tsunami de fascismo’, ‘um tsunami de arrogância’, ‘um tsunami de adrenalina’, ‘um tsunami de azar’, ‘um tsunami de elogios’, ‘um tsunami de impostos’, ‘um tsunami de e-mails’, ‘um tsunami de idéias’…
Ondas e modas verbais são devastadoras. Da noite para o dia fomos praticamente engolidos por uma palavrinha que se transformou em catástrofe.
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Doutor em Educação pela USP e escritor; (www.perisse.com.br)