Monday, 04 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

A pauta da cremação

A imprensa, a mesma imprensa que negou em vida ao ex-presidente Itamar Franco a repercussão de qualquer declaração de autoridades, fosse do governo ou da oposição, atestando como sua a paternidade do Plano Real, não esperou nem mesmo que o corpo do ilustre morto baixasse no forno crematório de Contagem (MG) para incluir em todas as frases de consternação que sua morte ensejou a emblemática afirmação de que ele, Itamar Franco, foi o verdadeiro pai do Plano Real.

Começando pelos ex-presidentes Luiz Inácio Lula da Silva, José Sarney e Fernando Collor, e passando também pelos governadores Antonio Anastásia (MG), Sérgio Cabral (RJ) e Geraldo Alckmin (SP), todos pareciam unânimes, como se fizessem parte de um vigoroso coral imaginário, ao lhe conceder em morte aquela mesma paternidade que lhe fora (so)negada em vida. E todos os que privaram da intimidade do ex-presidente sabem quão agastado o político mineiro ficava sempre que alcunhavam o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso de “Pai do Real”.

Se por um lado a grande imprensa foi célere em “dar a Itamar o que era de Itamar”, foi novamente relapsa ao não conseguir qualquer declaração nesse sentido do ex-presidente Cardoso. E relapsa duplamente ao não repercutir a não-declaração daquele que se elegeu duas vezes presidente no Brasil (1994 e 1998) sendo vendido como pai, criador e fiador do Plano de Estabilização Econômica conhecido na linguagem das ruas como Plano Real.

Uma época tão marcada pela vaidade, pelo exibicionismo e pela busca do sucesso pessoal e profissional a todo custo, causa estranheza ver que esses sinais ostensivos de uma ordem mundial decadente, com prazo de validade há muito vencida, não abarcam mais os mundos misteriosos do além, aqueles que se separam deste pela tênue cortina da morte.

Lápides e musgos

Esses pensamentos vieram à mente tão logo a imprensa passou a divulgar que o ex-presidente Itamar Franco, falecido no sábado (2/7), em São Paulo, seria velado no dia 3 em Juiz Fora e cremado em Contagem, ambas nas Minas Gerais. Ainda neste ano de 2011, afamília do ex-vice-presidente da República José Alencar Gomes da Silva – morto em São Paulo em 29 de março –, optou por sua cremação, em cerimônia realizada no dia 31 de março no Cemitério Parque Renascer, em Contagem.

Comecei então a implicar mentalmente com a idéia de cremação. Que idéia ou opção de destino final tão poucas vezes detalhada na imprensa! Nunca deparei com matérias sobre o assunto nos jornais. As revistas tampouco concedem algum destaque ao tema. Televisão? Ainda não sei de qualquer documentário sobre cremação de corpos em qualquer canal da tevê aberta. Nem tenho conhecimento de algum dos entrevistados do Programa do Jô deitando falação sobre o assunto, seja porque dele entende, seja porque deseja ser cremado tão logo pare de bater o coração. Nos festivais anuais de futilidades e frivolidades que alimentam a produção das onze edições do Big Brother Brasil também não sei se as antenas do Grande Irmão captaram alguma conversa dos heróis do Pedro Bial sobre o tema quase-sem-palpitação.

Como dizia meu avô Venâncio Zacarias, velho líder político de sua modorrenta cidade de Macau, no Rio Grande do Norte, “meu filho, na vida tudo muda; e a única cousa que não muda é a própria mudança”. Tinha razão o avô. E nem mesmo os cemitérios, os locais de descanso eterno, conseguiram passar incólumes à idéia de mudança. Mas nem sempre foi assim. Em todos os tempos os povos sentiram a necessidade quase imperativa de marcar o lugar de repouso sagrado de seus benfeitores, de seus estadistas e governantes e também de suas celebridades. E em tais locais eram construídas desde belas capelas até monumentos graníticos encimados por esculturas da vasta mitologia sacra, com imagens de anjos em diversas situações, efígies de santos e padroeiros protetores, até cruzes estilizadas e esmerado cuidado na escolha das palavras a serem afixadas nas lápides e nos túmulos, geralmente excertos das Sagradas Escrituras ou frase de efeito no mundo real, como a repercutir seus efeitos no mundo dos mistérios.

Chega a causar perplexidade a existência de um novo gênero de turismo: o necroturismo. É aquele procurado por pessoas que viajam pelo mundo a visitar cemitérios. E empreendem as viagens com o intuito de render sua homenagem a pessoas famosas, que marcaram sua maneira de ver o mundo, e dentre estes encontram-se os grandes escritores, poetas, filósofos e os famosos do show business – cantores, artistas do cinema. Viajavam também motivados pela idéia de apreciar – sim, apreciar – a arquitetura dos túmulos. Há aqueles que desejam conhecer algum aspecto histórico relacionado à morte de determinada personalidade, coisa muito comum a estudiosos e também a admiradores em geral.

O necroturismo, como os demais tipos de turismo, tem também seus destinos imperdíveis. Père Lachaise, em Paris, é o cemitério mais famoso da França. Nos seus 500 mil metros quadrados estão túmulos famosos como os de Honoré de Balzac, Marcel Proust, Chopin, Oscar Wilde, Edith Piaf, Richard Wright e o do emblemático Jim Morrison, vocalista da legendária banda de rock The Doors. Tem sido destacado que este cemitério francês se tornou um marco desde o século 19 para a construção dos cemitérios modernos, representando a transição entre o modelo de cemitério urbano, com jardins, para os cemitérios rurais.

O Cemitério Nacional de Arlington (Virgínia, EUA) é o mais conhecido e tradicional cemitério militar norte americano. Fica localizado na área em frente a Washington D.C, do outro lado do rio Potomac, perto dos prédios do Pentágono, cortando a capital americana. A extensão da área é de 4.000 metros quadrados onde estão enterradas mais de 360 mil pessoas, em geral veteranos de cada uma das guerras travadas pelo país, desde a revolução americana até a atual Guerra do Iraque. Entre os túmulos está o do ex-presidente John F. Kennedy.

E não se pode deixar de visitar o de San Michele (Itália), o principal cemitério de Veneza. San Michele está situado numa ilha a poucos minutos da cidade pela via Vaparetto, e é apelidado de “ilha dos mortos”. Pode soar repetitivo, mas deve-se esclarecer que é um lugar procurado por quem está atrás de reclusão, paz e tranquilidade, sobretudo quando a Praça de São Marcos recebe muitos turistas. Entre as lápides de pedras e os altos ciprestes estão os túmulos de Ezra Pound, Igor Stravinsky e Joseph Brodsky.

Aos turistas mais abonados tem sido recomendado visitas aos cemitérios da Recoleta (Buenos Aires), onde está enterrada Evita Perón e tem sua topografia bem delineada com ruas e até praças; e ao Old Jewish(Praga, República Tcheca), muito antigo, datando do século 15. Conta com cerca de 12 mil sepulturas, é o de maior número de defuntos por área quadrada. Sem espaço para enterrar seus mortos, os judeus se viram obrigados a sobrepor lápides umas às outras. Com os anos, acumularam-se doze camadas, e as lápides mais à superfície estão cobertas de musgos. Entre elas está a de Franz Kafka.

Palavras do poeta

E no Brasil? Temos dois cemitérios famosos. O da Consolação, em São Paulo e o de São João Batista, no Rio de Janeiro. O da Consolação, inaugurado em 1858, é o mais antigo dos 22 em funcionamento na capital paulista. É a morada eterna de muitas figuras célebres da história do país. Em seus primórdios abrigava democraticamente gente de todas as cores e classes, do patrão ao escravo, como a recordar que ficarão todos iguais no final da vida; mas com a consolidação do sistema capitalista, ainda no início do século 20, o cemitério passou a ser objeto de desejo dos mais ricos, passando a ser visto como símbolo de prestígio, uma espécie de ostentação e última vaidade desses que daqui partiram para uma viagem sem fim.

A arte-escultura, também conhecida como arte tumular, tem aqui seu franco desenvolvimento. Ali descansam os ossos de muitas personalidades importantes, como a tríade modernista Tarsila do Amaral, Oswald de Andrade e Mário de Andrade. Os presidentes Campos Sales e Washington Luís. Fazendo jus à pujança de São Paulo, o destaque fica para o exuberante mausoléu da família Matarazzo, considerado o maior da América Latina, ocupando uma área de 150 metros quadrados e perfazendo 25 metros desde o subsolo ao topo.

Dentre os inquilinos eternos do São João Batista encontram-se os escritores e jornalistas Carlos Drummond de Andrade, Carlos Lacerda, Octávio Malta, Mário Filho, Otto Lara Resende, Paulo Francis, Fernando Sabino; os artistas Carmen Miranda, Cândido Portinari, Baden Powell, Leila Diniz, Cazuza. Conta com centenas de ricos mausoléus e artísticas sepulturas. No centro, há uma capela dedicada a São João Batista. É também a necrópole que mais abriga tumbas de chefes de estado no Brasil, com pelo menos nove ex-presidentes da República, diversos ministros do Império e até um ex-chefe de Estado estrangeiro (Marcelo Caetano, ex-presidente do Conselho de Ministros de Portugal).

Deitado à sombra de uma palmeira, como profetizou nos versos de “Sabiá”, figura a sepultura de Antônio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim (1927-1994), ou simplesmente Tom Jobim. Sobre o mármore, as palavras do poeta: “'Longa é a arte, tão breve é a vida”. Do outro lado da ruela, réplicas da Pietá, São Miguel Arcanjo e São Geraldo atraem o olhar.

Existência questionada

Há que se pautar na imprensa, com maior regularidade, o tema da cremação. Este é ainda um serviço envolto em mistérios. Alguém saberia informar qual o preço médio para a cremação de um corpo? Quantos fornos crematórios existem no Brasil? E quanto a implicações jurídicas, será que não foi ainda pensado que o corpo humano é um documento, seja vivo ou morto? Quantos casos de erro médico, ou mesmo de homicídio, são esclarecido muitas vezes após a exumação de sepulturas após decorrido anos e décadas?

Agora mesmo, em Santiago do Chile, a família autorizou a exumação do corpo do ex-presidente chileno Salvador Allende, morto em 11 de setembro de 1973, naquele que foi certamente o mais famoso 11 de setembro da América Latina. O objetivo? Esclarecer de uma vez por todas se o líder chileno cometeu suicídio ou se foi assassinado pelas tropas do general golpista Augusto Pinochet. E, caro leitor, se seu corpo não mais existisse, tivesse sido cremado?

Na seara política brasileira, vira e mexe uma romaria de brasileiros acorre à cidade gaúcha de São Borja para visitar o túmulo do presidente Getúlio Vargas. No local tem sido comum a leitura de manifestos de partidos políticos e outras solenidades do tipo. Uma coisa é certa, a única prova irrefutável de que um dia existiu alguém, não importa se há dezenas ou há centenas de anos, é o estabelecimento indubitável de seu lugar de descanso eterno. Não à toa que arqueólogos ainda buscam vestígios de algum sepulcro do fundador do Cristianismo e, vez por outra, toca algum alarme falso sobre o assunto. Alarmes que logo incendeiam a imaginação não apenas de teólogos e de arqueólogos como também de cristãos em geral.

Outra coisa é certa: nos anos e séculos vindouros, ou enquanto este planeta existir, as futuras gerações poderão simplesmente questionar a existência física de tantas personalidades que, em seu tempo, tomaram para si a tarefa de escrever parte da nossa História.

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[Washington Araújo é mestre em Comunicação pela UnB e escritor; criou o blog Cidadão do Mundo; seu twitter]