Saturday, 02 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

A pior forma da notícia

A propósito do caso da jovem supostamente atacada por neonazistas, a imprensa suíça – em especial o jornal conservador Neue Zürcher Zeitung, um dos mais prestigiosos daquele país – acusou a imprensa brasileira de incorrer nos vícios da ‘precipitação’ e publicação de ‘fatos totalmente inventados’. Este último caso é o que a imprensa norte-americana designa, desde o século passado, como ‘factóides’, termo popularizado entre nós pelo ex-prefeito do Rio, César Maia. Há uma restrição inicial a se fazer à acusação dos suíços: o advérbio ‘totalmente’. Não há dúvida, porém, de que a precipitação editorial é responsável por uma freqüência alarmante de factóides parciais, ou então de matérias muito mal apuradas, suscetíveis de deformação dos fatos.

Examinemos dois exemplos de O Globo, ocorridos numa só semana. O primeiro, na terça-feira (10/2), com o título de ‘Piratas fora do ar’, é a notícia do fechamento, pela Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), de cinco rádios clandestinas no bairro de Cidade de Deus. Isto não é inusitado no país (segundo a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão, Abert, haveria 15 mil dessas rádios no Brasil), em especial no Rio de Janeiro, onde o número dessas instalações pode chegar a mil em favelas. A Anatel informa que fecha, em média, ‘seis rádios piratas por dia em todo o país’.

Os aspectos e os paradoxos

Naquela terça-feira, a operação foi ruidosa. Mesmo sem qualquer indício de resistência, os agentes da Anatel, em diligência conseqüente ao que diziam ser uma denúncia anônima, fizeram-se acompanhar de 50 PMs do Batalhão de Operações Especiais (Bope), o famoso protagonista do filme Tropa de Elite. E a matéria publicada reproduzia a declaração de um capitão da PM: ‘Desde o início da nossa ocupação, fizemos várias apreensões, sempre com a ajuda dos moradores, que estão indignados com a ação do tráfico na comunidade’.

O deslocamento operado pela frase do policial – a passagem, sem maior explicação, do fechamento da rádio à ação do tráfico – é o índice forte de uma parcialidade assumida acrítica ou tendenciosamente pela matéria. Trata-se de um velho truque retórico em que se joga com o pathos do público, implicando no enunciado, sem qualquer relação de causa e efeito entre uma coisa e outra, o condenável tráfico de drogas.

De resto, em primeiro lugar, a matéria troca a expressão ‘rádio comunitária’ (reconhecida e usada pelo Ministério das Comunicações) por ‘rádio pirata’, expressão oficialmente desconhecida; em segundo, omite a Lei 9.621/98, pela qual o Estado reconhece e define rádio comunitária como ‘um tipo especial de emissora de rádio FM’; em terceiro, desconhece a existência de um movimento pela descriminalização dessas emissoras; em quarto, desconhece que as transmissões de baixa potência (25 watts) não interferem na comunicação pública, tanto que são utilizadas maciçamente por governos em suas campanhas de educação e saúde públicas. A boa contextualização jornalística do fato em questão obrigaria o repórter a dar conta de todos esses aspectos e seus paradoxos.

Enfim, pela precariedade da apuração, pelo implícito insinuado, a matéria descortina-se como um factóide parcial.

Irregularidades de que sempre se sabe

O segundo exemplo refere-se à notícia publicada na sexta-feira (13/2) sobre suposto esquema de superfaturamento na aquisição de computadores pela Fundação Biblioteca Nacional (BN) para a instalação de novas bibliotecas em municípios do país, uma etapa do enorme esforço dos Programas Livro Aberto e Mais Cultura, capitaneado pelo governo federal.

Assim como no caso das rádios comunitárias, uma denúncia anônima mobilizou atenções. Agora se tratava de um e-mail antigo, em que um remetente fantasma falava com um funcionário de uma empresa de computadores sobre um suposto percentual que poderia ser dado a funcionários da BN. Acicatado pelo e-mail, o jornalista comparou os preços atuais dos equipamentos com aqueles adquiridos na época da licitação e concluiu por um superfaturamento.

O factóide?

A matéria deixa de explicar que toda e qualquer compra feita hoje pelo serviço público é precedida de processo licitatório público, que não permite indicação de marcas e se obriga à opção pelo menor preço do mercado. Não há como fugir a esses requisitos, acompanhados de perto pela Controladora Geral da União – auditoria externa – e, no final, pelo Tribunal de Contas da União, dois órgãos de altíssima competência contábil, conhecidos pelo rigor no exame de contas públicas. Além disso, uma instituição como a FBN conta com auditoria interna. Isto significa que não possa haver irregularidades em compras públicas? Não, mas significa que tais irregularidades, quando existem, delas sempre se sabe.

Pacto de credibilidade

Pois bem, primeiro a matéria deixa de informar que os computadores adquiridos não são todos da mesma marca, mas que todos eram dotados de qualificação técnica superior com o objetivo de atender o prazo de garantia estabelecido no edital (três anos on site em território nacional). Depois, a operação de compra se deu após avaliação técnica e emissão de pareceres favoráveis da Procuradoria Federal e Auditoria Interna da FBN. Finalmente, os equipamentos foram adquiridos pelo menor preço e abaixo do valor estimado, como é óbvio em toda licitação, mediante o pregão nº 16/2007 – do qual participaram vários licitantes –, acompanhado depois, em operações de compra, pelos Ministérios da Educação, Marinha, Agricultura e outros.

A matéria menciona este último aspecto do fato, mas deixa-o no fim do corpo da notícia, já que o lead menciona apenas a FBN, logo após o título-factóide: ‘FBN compra computadores 77% mais caros’.

Um profissional da fácil comunicação pública poderá comentar que tudo isso é muito detalhe técnico e que, dentro do escopo da prática noticiosa atual, as pessoas poderiam considerar o texto enfadonho, ao estilo dos manuais, e deixar de ler a notícia. De fato, com o tecnicismo administrativo e jurídico, o ‘sensório’ do leitor se dispersa – uma atenção já atulhada por imagens de televisão e flashes de internet – e a notícia perde impacto.

Mas é justamente neste ponto que se vem levantando a questão do futuro do jornalismo impresso frente à comunicação eletrônica. Não vale a pena sequer suscitar a possibilidade de má-fé, malevolência (ou do que, numa certa gíria jornalística recente, se vem chamando de ‘esculacho’) na edição da notícia. Não, a realidade parece apontar para o factóide, gerado pela má apuração e pela precipitação noticiosa, que terminam suscitando uma ‘suspeita’, ótima para os critérios editoriais de um momento, mas incômoda para a instituição mencionada e, no limite, danosa para a instituição do jornalismo, enquanto prática que classicamente sustenta um pacto de credibilidade com o leitor.

Compromisso ferido

A facilitação com o fictício na produção da notícia – este gênero informativo que funciona há dois séculos como núcleo semiótico e industrial do jornalismo – pode ser fatal para a imprensa escrita, numa época em que se tornam fracos os marcadores da diferença entre o imaginário e o real, por conta da multiplicação dos efeitos ficcionais do ‘acontecimento’ na mídia.

Editorialmente, acontecimento é a referência apropriada por uma seqüência de enunciados cronologicamente ordenados, alterando-se a técnica de apropriação de acordo com o gênero em que se manifeste a narrativa. Na notícia, que é uma estratégia essencialmente jornalística, o acontecimento referido obriga-se a ser verídico (real-histórico, portanto) e a obedecer à técnica corrente na comunidade do jornalismo corporativo. O real da notícia é a sua ‘factualidade’, a sua condição de representar um fato por meio do acontecimento jornalístico.

O futuro do jornalismo impresso, o ‘jornalismo de qualidade’, parece apontar para o aprofundamento do fato social por meio da exposição do acontecimento. Fatos totalmente ou parcialmente inventados são índices de uma fissura no pacto implícito da imprensa com seu público. Ganha-se atenção pública com o ‘esculacho’, mas se fere o compromisso classicamente instituído com a cidadania, que define, em última instância, a comunidade discursiva dos leitores.

A propósito, a matéria sobre o assunto dos computadores publicada no sábado (14/2) pela Folha de S.Paulo era sóbria e, considerando-se sua pequena extensão, correta. É possível que a presença de um ombudsman faça diferença em casos dessa natureza. Mas o problema pode ser maior do que isso.

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Jornalista, escritor e professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro