Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

A polêmica do crucifixo marxista

As pessoas dão os significados que bem entendem às coisas. E quando é para difundir um discurso de ódio, sem informação e sem entender os contextos históricos e sociais dos fatos, distorcem assuntos sem o mínimo pudor. É o que aconteceu com o crucifixo de Jesus Cristo, esculpido sobre um suposto símbolo comunista, entregue ao papa Francisco pelo presidente da Bolívia, Evo Morales, na visita do pontífice ao país.

Aí, com toda a polêmica gerada pela grande mídia ao dar um destaque desmedido ao episódio (polêmica logo disseminada fortemente nas redes sociais), o assunto ganhou uma repercussão impressionante, pelo menos aqui no Brasil. Se as pessoas prestassem mais atenção aos contextos, grande parte das discussões nem aconteceriam. O crucifixo tem uma forte simbologia para os bolivianos. É a reprodução de uma escultura do sacerdote espanhol Luis Espinal, que tinha ligação com movimentos sociais bolivianos e foi assassinado por paramilitares em 1980, na ditadura de direita (capitalista) que comandava o país à época.

Ademais, apesar de o comunismo de Marx pregar o ateísmo, com o passar do tempo, diversos movimentos, inclusive dentro da Igreja Católica (vide teologia da libertação) aproximaram o cristianismo das causas sociais do comunismo.

Por isso, considero que o presente foi bem pertinente, mais ainda com um discurso totalmente anticapitalista proferido pelo papa durante o Segundo Encontro Mundial de movimentos Populares, em Santa Cruz de La Sierra, e que pode ser encontrado na íntegra no site da Rádio Vaticano (http://pt.radiovaticana.va/news/2015/07/10/discurso_do_papa_aos_movimentos_populares_(texto_integral)/1157336).

Amor e serenidade

Em um trecho do discurso, Francisco chama o capitalismo de “ditadura sutil” e pede mudanças: “Queremos uma mudança, uma mudança real, uma mudança de estruturas. Este sistema é insuportável: não o suportam os camponeses, não o suportam os trabalhadores, não o suportam as comunidades, não o suportam os povos… E nem sequer o suporta a Terra, a irmã Mãe Terra, como dizia São Francisco.”

Noutro momento o papa é ainda mais duro: “E por trás de tanto sofrimento, tanta morte e destruição, sente-se o cheiro daquilo que Basílio de Cesareia chamava ‘o esterco do diabo’: reina a ambição desenfreada de dinheiro. O serviço ao bem comum fica em segundo plano. Quando o capital se torna um ídolo e dirige as opções dos seres humanos, quando a avidez do dinheiro domina todo o sistema socioeconômico, arruína a sociedade, condena o homem, transforma-o em escravo, destrói a fraternidade inter-humana, faz lutar povo contra povo e até, como vemos, põe em risco esta nossa casa comum.”

Além disso, voltando à discussão sobre a pertinência do presente dado ao papa, para mim Jesus foi o homem mais socialista de todos os tempos (sem a crueza e a desumanidade do comunismo pregado originalmente por Marx e praticado principalmente na União Soviética), ao pregar amor, desapego aos bens e ao dinheiro, oportunidade de crescimento para todos e que as pessoas sejam ajudadas de alguma forma, tópicos aos quais o capitalismo é totalmente avesso.

Não sou católico, mas considero o papa Francisco, enquanto líder político e espiritual, muito sensato na forma com que conduz uma das maiores religiões do mundo. Oficialmente, ele não se sentiu ofendido pelo presente e, certamente, não está feliz com essa proliferação do ódio em torno disso. Sejamos também sensatos, divulguemos o amor e a serenidade, como o próprio papa está fazendo e Jesus fez.

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Raul Ramalho é jornalista