Al Gore escreveu uma obra difícil de definir. A princípio parece uma bem cuidada reportagem investigativa sobre as conseqüências do efeito estufa. Através da comparação de fotos antigas e atuais, da referência às análises científicas dos dados coletados pelos cientistas nos últimos 50 anos, de informações militares sigilosas, Al Gore demonstra que as geleiras européias, asiáticas e africanas estão desaparecendo, que as calotas polares estão derretendo e se esfacelando e que a temperatura média dos mares está aumentando e devastando os recifes de corais.
A linguagem cuidadosamente escolhida pelo autor reforça a impressão de que o livro é uma reportagem investigativa. Ao invés de usar argumentos ecoideológicos para defender sua opinião, Al Gore procura demonstrar que os fatos naturais e as análises científicas falam por si sós, como se coubesse a ele apenas relatá-los. O ex-vice-presidente norte-americano organiza sua mensagem como se ela própria fosse um dado natural.
Cuidadoso e escorregadio
Só percebemos que o livro é político ao nos depararmos com os capítulos em que Al Gore se refere à sua infância, convivência com a irmã, carreira política e, principalmente, plataforma ecológica. Quando se refere a si e sua maneira particular de encarar a vida, à política e à natureza, Al Gore realça sua imagem pública. Quando aborda a politização do aquecimento global procura desqualificar seus opositores. Quaisquer teses, provas científicas ou idéias que destoem ou refutem a mensagem natural/científica que ele encarna são descartadas por serem falaciosas, politizadas e, portanto, mentirosas.
Em razão do virulento ataque que faz à suposta politização do aquecimento global, Al Gore enfraqueceu o poder da sua mensagem. Até então, ele não havia inserido a mensagem natural/científica do livro dentro do registro especificamente político. Ao fazê-lo, ele a transformou na sua plataforma eco-politizada e revelou, portanto, o quanto seu discurso pode ser considerado cínico e intolerante.
Como jornalista, Al Gore cometeu o mesmo equívoco que alguns de seus colegas. Mesmo quando aborda temas espinhosos e controversos, o discurso jornalístico pretende ser imparcial, impessoal, técnico/científico e despolitizado. Contudo, por mais cuidadoso e escorregadio que seja o jornalista, quase sempre ele se trai ao adjetivar as convicções opostas às teses que procura endossar de maneira impessoal. Além disto, o simples fato de reforçar publicamente uma mensagem, e não outra, já indica claramente qual sua posição política.
Apenas um político vaidoso
O discurso jornalístico pode se inserir dentro do contexto do elogio (ou seja, do discurso desapaixonado sobre o bom, belo e justo, voltado para si mesmo). Pode ainda ajustar-se ao discurso político, que é sempre apologético (visa o convencimento e usa os desejos e temores da platéia). Mas quando passa claramente do elogio à apologia o discurso se torna ambíguo e coloca em risco a mensagem.
No caso específico de Uma verdade inconveniente, toda a força dos fatos naturais/científicos, que foram expostos cuidadosamente pelo autor, passa a depender da sua posição política e pessoal sobre o tema. É impossível ao leitor dar crédito aos fatos naturais/científicos relatados no livro sem avalizar politicamente o autor do discurso. Assim, o próprio discurso pode passar a ser julgado por outros critérios (e não pelos seus próprios méritos). Qualquer preconceito que tenhamos em relação a Al Gore, aos democratas e aos ecologistas, desmoralizará a proposta do livro (muito embora ela seja boa, bela e justa).
Para aproveitar bem o livro, dê mais crédito aos fatos naturais/científicos narrados do que aos seus preconceitos pessoais. E, sobretudo, não julgue o mérito da obra pela propaganda pessoal que o autor fez através dela (Al Gore é só um político vaidoso, como todos os políticos sempre foram e serão).
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Advogado, Osasco SP