Qual o poder de um jingle? Essa é a pergunta que me vem à cabeça toda vez que me pego cantarolando, quase inconscientemente, as musiquinhas que adornam comerciais mundo a fora. Grudento tal chiclete no asfalto quente, esse recurso da publicidade é, quase sempre, um tiro certo na cabeça de quem os ouve. Ame ou odeie, ele estará lá, tocando nos breaks das novelas e telejornais e ecoando embaralhado os pensamentos do cotidiano.
Para quem pensa que a coisa está meio fora de moda em tempos de consumo consciente e direitos dos consumidores, que pregam a informação em detrimento da simples explanação (ou mera persuasão) dos produtos, basta ligar a TV ou o rádio para constatar que o soneto é outro. Na vasta cartela de produtos e serviços que são oferecidos, lá estarão os famigerados anúncios cantados cujo uso, não por acaso, é recomendado em manuais da área que curiosamente sugerem: “Quando você não tem nada a dizer sobre um produto, cante. Cantando, você diz muito melhor.”
Essa forma “melhorada” de anúncio, sem dúvida, auxilia na fixação da mensagem. E quando a decoramos, não gravamos só a melodia, com suas rimas ricas e ritmos acelerados, mas também o que nela está contido – um discurso sobre o nada desprovido dos propósitos que o qualificariam como um “anúncio cidadão”. Mas enquanto o dito ficar pelo maldito, corre-se o risco de o debate virar proibição, cerceando a querela e aumentando a polêmica. Perde-se, mais uma vez, a oportunidade de diálogo.
O que pensam as crianças?
No início do mês, o comercial da montadora de carros Nissan, criado pela agência Lew´Lara/TBWA, alçou o titânico patamar de “maior sucesso de todos os tempos” da última semana. Em poucos dias, obteve mais de um milhão de views no YouTube e alcançou o topo dos trend topics (TTs) do Twitter, que é o ranking dos assuntos mais comentados no microblog, além de abiscoitar cerca de 30 denúncias realizadas ao Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar), incorrendo em abertura de um processo para averiguações.
O enredo do comercial “brinca” com a potência dos veículos da mesma categoria do modelo da Nissan, trocando os pujantes cavalos, que alavancam o motor, por pôneis – malditos. Ao abrir o capô do carro, após atolar em uma poça de lama, o motorista depara com um colorido e pueril carrossel de pôneis entoando a singela canção: “Pôneis malditos, pôneis malditos, venha com a gente atolar! Odeio barro, odeio lama – que nojinho – não vou sair do lugar!”
Segundo o jornal Meio & Mensagem, as reclamações encaminhadas ao órgão auto-fiscalizador incidiram sobre a relação entre uma alegoria infantil, os pôneis fofinhos, e a palavra “maldito”. Por outro lado, a opinião, quase unânime, dos publicitários em matérias que levantam a questão, é a de que o comercial é apenas mais uma expressão da criatividade do setor. E o que pensam as crianças, tomadas como as maiores lesadas? Não está (ou já passou) da hora de procurarmos entender como se dá a construção de sentido nesses pequenos, e nada parvos, consumidores?
Autorregulamentação está fora de moda
Mesmo não tendo sido suspenso “oficialmente” pelo Conar, que irá julgar o caso somente no próximo mês de setembro, o comercial já não é mais visto no ar. E nem precisaria. Após a polêmica, o debate em torno da questão ajudou a viabilizar um dos objetivos almejados em campanhas publicitárias: a mídia espontânea que, de lambuja, aumenta a visibilidade da marca. Mas, e o resultado do processo no que dará?
Quando o diálogo não existe, incorremos em proibições capengas e discussões pontuais que não movem nada nem ninguém de seus lugares. Ou o jingle da campanha Criança Esperança, que de forma onipresente e incisiva lança mão de apresentadores populares (e da Xuxa) para entoarem a “mel-odiosa” canção que solicita a doação e a adesão à empreitada anual da Rede Globo, é menos “nocivo” do que os pôneis malditos?
O caso é mais uma demonstração emblemática do hedonismo que move publicitários ávidos pelo ensejo, inventivo e certeiro, de retratar e abocanhar os anseios de consumidores cada vez mais exigentes. Sem referências, muitas vezes vão da tentativa ao erro, e do erro à indignação em poucos momentos, incentivando as mais tresloucadas e ontológicas ações, como é o caso da PL 5921/2001 que visa a “proibir a publicidade/propaganda para a venda de produtos infantis”, cujo baluarte é a proteção das criaturinhas puras e indefesas que se abrigam na maturidade intelectual dos adultos, as crianças. A ação de proibir, palavra que dá arrepios a quem viveu tempos sombrios e nada longínquos de interdição, certamente só aumentará o fosso entre esse fazer-querer, buscado pela publicidade, e uma atividade cidadã. Extensãoessa que, cada vez mais, obstrui a conversa tão importante a ambos, e imperativa a todos.
Como a proibição, a autorregulamentação está tão fora de moda quanto a automedicação e o autoexílio, mas com uma diferença: a autorregulamentação ainda é praticada abertamente. A busca pela “defesa das prerrogativas”, missão do Conar, é tão profícua quanto a esperança global montada em lombo de pônei. Inocente (ou não), inábil e senil, sua atuação só ocorre depois que os objetivos de visibilidade já foram atingidos. E aí, a polêmica virou lucro.
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[Lyana de Miranda é jornalista, publicitária e mestranda em Educação – UFSC, Florianópolis,SC]