Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A presença judaica no Brasil

 

Porto Alegre está completando 240 anos e o jornal Zero Hora encartou caderno especial na edição de segunda-feira (26/3) para celebrar a efeméride. A Secretaria Municipal da Cultura, liderando as comemorações, apresentou extensa programação com palestras, shows etc.

Um das palestras teve lugar na Sala Álvaro Moreira, ao lado da Biblioteca Josué Guimarães (um dos escritores referenciais do Brasil meridional), com intervenções do professor e historiador Voltaire Schilling e deste autor. O tema foi a presença judaica no Brasil. Como sou a pessoa menos indicada para fazer qualquer apreciação ao que expus, limito-me a comentar brevemente a sagaz apresentação do historiador.

Voltaire Schilling começou por dizer as coisas como as coisas foram. Os católicos foram ensinados a odiar os judeus e tudo o que dissesse respeito à sua cultura desde os mais tenros anos e durante muitos séculos. Nem sequer o Iluminismo, que consagrou a tolerância religiosa, levou a igreja a mudar a triste condenação ao povo de Israel, de que é exemplo emblemático a prece incluída na própria liturgia da missa (“rezemos pelos torpes judeus”). Essa imprecação somente foi retirada da liturgia católica pelo papa João 23.

Contribuição notável

Em explanação didática, Voltaire Schilling não se limitou aos grandes quadros gerais que servem de amparo a corajosos intelectuais que entretanto costumam ignorar o Brasil em seus voos de interpretação. Afinal é mais cômodo, mesmo num mundo globalizado, revoltar-se contra as perseguições na Síria, na Líbia, na Europa, na China etc., do que opinar sobre os desmandos ocorridos sob o nariz de quem está escrevendo.

Cada vez que participo ou mesmo apenas assisto a um desses eventos fico pensando em quanto a nossa mídia anda desinteressada do que não é óbvio. O surgimento da internet, com a eclosão dos blogues e das redes sociais, vem escancarando essas omissões. De outra parte, o progressivo apagamento da figura do correspondente de jornal ajuda na obstrução do caminho que vai dos fatos ao leitor e que deve passar necessariamente pelas etapas essenciais do bom jornalismo: o editor designa o repórter que, pautado, sai às ruas e de lá volta com a matéria bruta, pronta a ser editada, contextualizada em meio a outras notícias que chegam à redação. Estão reunidos os ingredientes indispensáveis a que seja feito um bom prato a ser servido ao leitor.

Mas que vejo no outro dia nos jornais? Nada do que vi, nada do que poucos viram. Assim são mortas, ainda no berço, notícias que mais tarde poderiam ajudar a entender o que desaba ex abrupto sobre nossas cabeças sem que nada saibamos de como tudo começou, como se organizou etc.

Voltaire Schilling é mestre em articular modelos de conferências que fixam os vínculos entre o ontem e o hoje. Destacou no tema solar do encontro – a presença dos judeus no Brasil – a guinada havida na segunda metade do século 19. Passou-se de um antijudaísmo (judeus odiados por serem acusados de ter executado Jesus Cristo) ao moderno antissemitismo (judeus odiados por serem ameaça a pátrias e raças).

Disse Voltaire:

“Esta alteração radical revelou-se ainda mais mortífera, visto que quando antes, acusados pelos líderes cristãos de serem portadores de uma crença considerada maligna, ainda podiam escapar com vida por meio da conversão ao cristianismo (como ocorreu em diversos episódios da história europeia). Quando todavia os compararam a bacilos e vírus perigosos que punham em risco a segurança da nação ou a saudabilidade da raça branca, abriram-se as portas à pavorosa política do seu extermínio em massa, pois é impossível acreditar-se na regeneração de uma bactéria nociva”.

Não deixou de destacar também a cor local. Lembrou que há poucas décadas misturava-se na Semana Santa a malhação de Judas à perseguição concreta a judeus estabelecidos em Porto Alegre. Desciam hordas de milícias católicas atacando judeus nas ruas e destruindo lojas no conhecido bairro de Bom Fim.

Ainda assim, o Brasil soube ultrapassar esse período e na mesa a presença dos judeus era destacada pela contribuição em diversos setores da vida nacional, sendo lembrada sobretudo a figura do escritor Stefan Zweig, que encontrou no jornalista Alberto Dines seu melhor biógrafo, e que é tema de meu mais recente romance, Lotte & Zweig (Editora Leya).

Preencher lacunas

Outra efeméride foi lembrada: no dia 23 de fevereiro de 2012 completaram-se setenta anos da tragédia de Petrópolis, na serra fluminense. Entre outros, o ex-prefeito de Porto Alegre e ex-senador, o professor José Fogaça, ao comentar o romance, lembrou que em sua geração as obras de Stefan Zweig foram muito lidas.

O bairro porto-alegrense do Bom Fim foi outra lembrança memorável no encontro. Malgrado as perseguições relatadas pelo conferencista, ali se consolidaram emblemáticas contribuições da imigração judaica.

E na quinta-feira (29/3) o governador Tarso Genro entrega no Rio, na Biblioteca Nacional, o Prêmio Moacyr Scilar, cujo primeiro vencedor foi Ferreira Gullar (R$ 150 mil para o escritor, R$ 30 mil para a editora que o publicou). A iniciativa foi coordenada pela Secretaria Estadual da Cultura, cujo titular é o professor da PUC e escritor Luiz Antonio de Assis Brasil. E o evento de que participaram Voltaire Schillling e este que lhes escreve foi organizado pelo professor da UFRGS e ensaísta literário Sergius Gonzaga, Secretário Municipal da Cultura.

Quando os governantes sabem escolher seus auxiliares por critérios que nem de perto passam pelo horroroso “cargo de confiança”, coisas memoráveis podem acontecer. Aqui foram delineadas duas delas.

O Brasil tem mais de cinco mil municípios. Por isso, temos efemérides suficientes para fazermos mais de cinco mil eventos culturais que sirvam à memória, em nós tão cheia de lacunas. Podem brotar desses memoriais uma saudável reflexão sobre temas muito relevantes, a começar pelo destino dos municípios. Afinal, cada brasileiro exerce sua cidadania num deles.

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[Deonísio da Silva é escritor, doutor em Letras pela Universidade de São Paulo, professor e um dos vice-reitores da Universidade Estácio de Sá, do Rio de Janeiro, autor de A Placenta e o CaixãoAvante, Soldados: Para Trás, Contos Reunidos e Lotte & Zweig (Editora LeYa)]