A presença de um outro é sempre uma condição necessária nos atos de linguagem, escreve-se a alguém, faz-se circular a informação para um alvo, espera-se um receptor para o filme ou o produto de entretenimento lançado, cria-se um nicho de comunicação para um determinado usuário, ainda que todos eles sejam imaginarizados. Assim, nas situações do cotidiano, o outro real ou imaginário é constitutivo da cena, é presença a estar permanentemente viva, é voz que mesmo ausente insiste em reclamar e demandar palavras, imagens e sentidos.
Mas, existem casos em que tal presença é interditada por completo, como se não existisse e toda a cena dissesse respeito apenas a um emissor ou agente. Exemplo disso é a narrativa jornalística, que circulou em periódicos e revistas da chamada grande mídia, sobre a compra do dossiê. Ora, alguém ter dinheiro para comprar algo implica necessariamente duas coisas: a existência de objeto em disputa a ser comprado e a presença de um outro interessado em vendê-lo. O dinheiro, nesse caso, tende a ser o meio que movimenta uma série de relações, mediadas por interesses subterrâneos que, muitas vezes, precisam ser guardados, visto que historicamente o segredo de informações encerra formas de poder.
Pois bem, o fato é que as textualizações midiáticas divulgaram fotos coloridas e grandes do dinheiro amontoado em uma mesa, lançando perguntas, insinuações e, não raro, acusações em relação a possíveis compradores e portadores, tamponando todos os outros elementos envolvidos na transação, a saber, o objeto da compra (documento em si) e o vendedor, visto que só se compra o que um outro vende. Centradas na figura de um suposto comprador (PT) e presas ao volume de dinheiro (milhões em bolsas de mão carregadas por assessores, presos em aeroporto), as narrativas jornalísticas omitiram os outros envolvidos na cena. Silenciaram-se, por exemplo, as informações do documento, a vinculação com um esquema de máfias sanguinolentas de desvio de dinheiro público sua ligação com candidatos do PSDB aos governos do estado e federal, a derrocada de uma imagem de ética e honestidade fantasiadas para tais candidatos durante a campanha. Mais ainda interditou-se a circulação de informações que dissessem respeito ao vendedor de tais dados e aos motivos que o levaram a comercializar documentos sigilosos e confidenciais.
Simbólico opaco
A fotografia do dinheiro, divulgada por um delegado que primeiro falou em roubo e depois, estranhamente, em entrega a jornalistas, além de ser estampada na primeira página de jornais impressos e abrir a navegação em muitos portais eletrônicos, também foi repetida em noticiários televisivos. Isso pasteurizou um efeito de verdade e naturalizou um sentido único para o fato, destacando apenas a fotografia como uma prova irrefutável de ilegalidade. De tão insistentemente dita e redita, a fotografia deixou de ser apenas uma imagem, conseguida sabe-se lá a custo do que e editada sabe-se lá com quais recursos, diga-se de passagem, para se tornar um ícone de suposta denúncia contra pessoas e governo.
Estranho tal circulação ocorrer às vésperas da eleição de Lula; estranha também é a forma como a fotografia passou a desenhar um movimento metafórico de crítica a ele e louvor aos oponentes, que deram muitos depoimentos nos últimos dias; estranha, por fim, é a representação da pilha de dinheiro tornar-se uma parte que ganha a dimensão de todo, costurando uma rede de associações cujo centro é o fazer político no país.
O que se pretende aqui é interpretar o funcionamento das imagens na mídia especialmente em relação a esse episódio. Tidas como provas documentais e como evidência de registros fidedignos da realidade, as fotografias não são questionadas em sua angulação, enquadramento, estrutura, edição, seleção e, por que não dizer, na opacidade que todo objeto simbólico encerra. A primeira página da Folha, além da foto do dinheiro na mesa, publicou, em primeiro plano, uma fotografia grande de Lula com um capuz azul marinho cobrindo a cabeça e escondendo metade do rosto, destacando a mão esquerda com o dedo faltante.
Muita ingenuidade
A estranheza dessa imagem combina-se com a existência de uma mão negra, de cujo dono não se vê o corpo, apoiada no ombro direito de Lula; ao fundo, aparecem alguns anônimos desfocados, um deles vestindo uma camiseta vermelha, cor emblemática e carregada de sentidos dados pela memória. Capuz da mesma cor da camisa, olhos tapados, barba cobrindo grande parte do rosto: todas essas marcas, destacadas na fotografia, criam o efeito de algo que está escondido, precisa ser mantido no esconderijo, deve ser encoberto, ainda que a legenda fale em proteção contra a garoa.
É certo que as palavras entremeadas nessa descrição não chegam perto do impacto das imagens publicadas nem dão a dimensão de estranheza do visual; ainda assim, vale a interpretação de que as duas fotografias constroem um diálogo intradiscursivo, isto é, um percurso de sentidos que mantêm continuidade e asseguram uma narrativa em dois momentos: o primeiro aparentemente mostra, revela, comprova o crime, apresenta sua prova verídica, ao passo em que o segundo esconde, vela e encobre o suposto culpado, marca outra forma de comprovação, agora da culpa.
Dizer que tais fotos são neutras e desprovidas de um enquadramento ideológico seria ingenuidade; considerar que a primeira página fixa apenas os fatos mais importantes do dia anterior, pespontando dizeres objetivos, isentos e verdadeiros seria muita ingenuidade.
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Professora-doutora da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo