A edição especial da revista Realidade de outubro de 1971 não foi apenas a “mais longa, custosa e apaixonante reportagem” já realizada pela Editora Abril, como proclamava o seu dono, Victor Civita, na “Carta do Editor”, mas a maior de todas as reportagens da história da imprensa brasileira. Para criar as 328 páginas da edição (das quais 137 de anúncios), em formato grande, foi recrutada uma equipe de 40 pessoas, 16 delas jornalistas, dos quais 13 foram a campo, incluindo o maior grupo de grandes fotógrafos que já trabalharam juntos (Maureen Bisilliat, Cláudia Andujar, George Love, Amâncio Chiodi, Darcy Trigo e Jean Solari), responsáveis pelas deslumbrantes fotografias (dentre elas, o antológico ensaio de Cláudia sobre os índios Yanomami, que passariam a ser sua causa) estampadas por qualquer publicação periódica nacional.
Para cobrir toda Amazônia, os repórteres viajaram de barco, carro a avião durante 1.232 horas, cobrindo 148 mil quilômetros de selva e rio, visitando 135 cidades. Concluíram, pela voz do editor, que a Amazônia era mesmo “a última grande fronteira terrestre a ser civilizada”, mas que o progresso trazido por sua ocupação devia seguir “em harmonia com a natureza”. Foi por “acreditar nessa possibilidade” que a Abril aceitou patrocinar a maior de todas as edições até então publicadas por Realidade tendo por tema único a região.
O sucesso de público e de crítica do trabalho excedeu todas as expectativas. Logo a edição – que alguns diziam ter sido de 250 mil exemplares e outros falavam em mais do que o dobro – se esgotou. Alguém tentou tirar o que à época se chamava 2º clichê. Mas outro alguém, convicto de que as vendas seriam inferiores, destruiu as matrizes. A edição nº 67 de Realidade se tornou relíquia. Outras edições especiais posteriores, sobre o Nordeste e Cidades Brasileiras, não repetiram a façanha e a revista, criada em 1966 e atingida violentamente pelo AI-5, de dois anos depois (quando, por infeliz coincidência, começou a história de Veja), não recuperou mais seu prestígio. Vegetou até desaparecer, em 1972, mais como uma versão de Seleções do Reader’s Digest do que da grande revista de reportagens que foi no apogeu.
Atrás dos fatos
Passados 40 anos, nenhuma empreitada jornalística se aproximou sequer de Realidade/Amazônia. É quase certo que jamais o que foi realizado nessa edição se repetirá. Primeiro por impossibilidade – ou incapacidade – de as empresas investirem o que foi aplicado na cobertura da Amazônia pela revista. Qual seria o valor atual? Seria bom fazer um cálculo exato. Mas nunca ficaria abaixo do milhão de reais.
Em segundo, pela qualidade da equipe comandada com maestria por Raimundo Rodrigues Pereira. O trabalho levou o tempo de um parto, nove meses, para ser finalizado. Nesse período, os repórteres contaram com todos os meios de transporte disponíveis, incluindo numerosos fretes de pequenos aviões, para ir onde fosse necessário para documentar “de maneira definitiva o momento mais dramático da Amazônia”.
Esse momento ímpar, no qual a Amazônia foi rasgada por estradas e frentes pioneiras e sucumbiu, talvez de forma definitiva, a um modelo externo e agressivo de ocupação, está muito bem documentado na revista. Nele sente-se, porém, um tom de exotismo, de otimismo e crença na capacidade de harmonização do avanço com as exigências da natureza e do homem. Essa crença comprometeu o descortino do caos que viria, não como elemento de surpresa, mas de efeito lógico desse modelo.
Foi uma felicidade para mim ter integrado a equipe. Aprendi com Raimundo um tanto do que apenas dois outros jornalistas me ensinaram: Cláudio Augusto de Sá Leal em Belém e Raul Martins Bastos, em São Paulo. No final da jornada eu tinha certeza de que minha tarefa não era olhar para a Amazônia de um promontório paulistano, mas varejando por suas trilhas. À cata dos fatos, de uma verdade, da história.
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[Lúcio Flávio Pinto é jornalista e editor do Jornal Pessoal (Belém, PA)]