Uma nota aqui e ali, um artigo acolá e eis que alguns setores do PT começam a ensaiar a necrópsia do cadáver insepulto em que se transformou o partido após o chega-pra-lá de Lula. Ruptura que até outro dia ninguém admitia publicamente, mas que agora é o vértice de um compungido inventário sobre as mazelas que estigmatizaram o petismo e quase custaram o mandato do próprio presidente. Que aparentemente só não foi desalojado do poder porque a oposição preferiu não forçar a barra, por determinação do próprio líder tucano Fernando Henrique Cardoso, de acordo com o que relatou e não foi desmentido em longa entrevista publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, em meados do ano passado.
A preocupação se justifica, é claro, embora provavelmente tardia e inútil, dada a verossimilhança de sua desdita com a do antigo PTB, cujo respaldo popular também não resistiu ao mesmo tipo de desvios éticos e morais que resultaram na virtual implosão de ambos. Mas não deixa de ser louvável que os esforços para resgatar o zumbi petista – o tal ‘juntar os cacos’ do maneiroso discurso que se apresenta agora – comecem a partir do reconhecimento do limbo a que o partido se vê relegado na atual conjuntura política.
Prestígio paradoxal
Autocrítica é o primeiro passo, mas nem sempre serve para redimir erros passados, ainda mais se o cerne do mal não for extirpado, como é o caso do atavismo stalinista de que o petismo velho de guerra não abre mão, como deixam claro os próprios remissistas da hora. Bem mais sensata tem sido a conduta da imprensa dita conspiratória que, salvo as exceções de praxe, tem pautado seu desempenho por não piorar um quadro já bastante preocupante.
Por outro lado, se a condição básica para a redenção almejada pelo petismo é não só a sinceridade de propósitos mas, principalmente, a disposição de não perseverar no erro, o pendor à reincidência, sob o velho e capcioso lema de que os fins justificam os meios, tão à gosto da esquerdopatia, por si só parece uma barreira instransponível. De qualquer forma, não deixa de ser interessante ver o petismo, enfim, se dispondo a aceitar que o lulismo precisa ser superado dialeticamente, e não vivido de forma messiânica, como decreta o professor Gilson Caroni Filho no artigo ‘Augusto Matraga e a grande imprensa‘.
Imagine-se o quanto deve ser difícil para os áulicos do petismo renunciar à maior conquista do partido em troca do tal materialismo dialético que não garante camisa a ninguém. Sim, pois não basta apenas a vontade de reinventar o partido na melhor das intenções, como de hábito.Antes de tudo, é preciso que a mudança funcione como catalisador de propostas factíveis, que quebrem resistências internas e permitam a construção de uma nova identidade, fora da esfera do poder.
É isto ou ficar a ver navios, enquanto a oposição, não obstante o crescente prestígio do presidente e por mais paradoxal que pareça, não precisa sequer se preocupar em atrapalhar um governo já bastante atrapalhado em salvaguardar a economia da iminente recessão mundial que fatalmente repercutirá aqui.
Desconstrução e heroísmo
Simplesmente porque com Lula fora do páreo para a sucessão presidencial do próximo ano, insistir com a velha cantilena, além de inócuo, é indício de que o projeto já nasceu morto. Falar em possível desconstrução de políticas implementadas nos dois mandatos ou, pior ainda, no restabelecimento de uma agenda externa submissa aos interesses norte-americanos, além da manjada prevenção contra a imprensa, que no geral tem se comportado à altura da gravidade do momento, sinaliza que o discurso retrógrado vai continuar o mesmo. Enfim, renunciar a dogmas heréticos, à hermenêutica totalitária, como fechar questão em torno de meias verdades, exibir convicção independente de provas – artimanhas que corrompem a política, conforme define o historiador marxista Hobsbawm em sua teoria do antiuniversalismo –, não cabe no inventariado esquerdista nem aqui nem na China.
Em suma, ainda que a disposição petista de se reciclar não deixe de ser um elemento novo, a preservação da práxis marxista com que almejam ‘revigorar-se social e ideologicamente’ aponta para uma mudança basicamente de fachada. Com o que se preserva também a vocação para o obscurantismo e o papel meramente decorativo do partido no quadro político. Algo que nem o fato de ter sido a legenda que mais elegeu candidatos nas recentes eleições municipais altera, posto que resumido à periferia. Nos grandes centros nem mesmo o apoio explícito de Lula adiantou, caso emblemático da capital paulista, onde Gilberto Kassab desbancou o favoritismo de Marta Suplicy.
Carma ou maldição, a sina de vencer mas não levar é um estigma que vai consolidando o PT como um aleijão em nosso cenário político. Não é à toa que agora fale em mudar, sacudir a poeira e sonhar com a volta por cima, ainda que o enredo esteja muito mais para a desconstrução vivida por Policarpo Quaresma na obra de Lima Barreto do que o intangível heroísmo conferido à Augusto Matraga no livro de Guimarães Rosa.
Mas, faz parte. Assim como o jornalismo, a política também sobrevive de alegorias cavilosas.
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Jornalista, Santos, SP