Passou esquecida pela mídia a data do centenário da morte de Euclides da Cunha (1866-1909), que se deu a 15 de julho último. Embora não fosse para comemorar, despertaria interesse pelo papel que desempenhou na vida militar, na política, na engenharia, no magistério, na literatura e, em particular, no jornalismo.
Como cadete numa formatura oficial, em 1888, provocou um escândalo. Estava presente o ministro da Justiça de D. Pedro II, Tomás Coelho, que passava em revista a tropa. Euclides atirou a espada aos pés desta autoridade, por suposta reação contendo motivo cooperativista ou plano combinado, para chamar a atenção e engrossar o coro dos defensores da República. O castigo não tardou: depois de preso, expulsaram-no da Academia. Só pelo presente fato, entrou para a história ao lado dos propagandistas da queda do imperador.
Como engenheiro, construiu pontes, estradas de ferro que ainda hoje, o que é raro neste país, funcionam. No desempenho do jornalismo, a participação se tornou ímpar, pelo pioneirismo ao produzir a grande reportagem, como correspondente da guerra de Canudos (1906-1907). Do seu trabalho depreende-se uma exemplar vocação para o jornalismo e a literatura, o que sempre quis fazer. Naquela época, quando esse gênero do jornalismo começava a tomar asas pela iniciativa de Paulo Barreto, o ‘João do Rio’ (1881-1921), ele demonstrou aptidão, habilidade e familiaridade no trato com as informações e as palavras, ao se aprofundar no tema.
Campanha pró-República
Transformou-se num repórter com todos os apetrechos no desempenho de um papel para o qual estava destinado e cujos resultados vieram a consagrá-lo. Observou diretamente a luta desencadeada no interior da Bahia, no lugar afastado chamado Canudos, hoje conhecido por Belo Monte, acontecimento liderado por Antonio Vicente Mendes Maciel, conhecido por Antonio Conselheiro. A causa da insurreição e o perfil do homem receberam explicações contraditórias. Uns o consideravam um analfabeto e fanático; outros, uma pessoa que sabia ler, escrever e estudou latim. O que ninguém pode negar: o seu extraordinário carisma, capaz de reunir, no início, 20 pessoas, para, em seguida, juntar 30 mil adeptos, entre o interior da Bahia e Sergipe, capazes de morrer pelos ideais defendidos. Machado de Assis, assustado com esse fato, escreveu uma crônica na qual considerou que uma pessoa como Conselheiro, que arregimenta todo aquele contingente para enfrentar uma guerra com adversário forte que usava armas pesadas, era alguém a merecer atenção.
O ‘Bruxo do Cosme Velho’ tinha razão. A força militar do governo saiu derrotada por três vezes. Nas pregações, Antonio Conselheiro espalhava protestos contra tributos cobrados pela República etc., como vingança contra o novo regime por separar-se de Deus (Igreja) e se unir ao diabo. Acusava os republicanos de acabarem com a família, ao adotar o casamento civil, antes feito pelos padres. Por onde passava, construía igrejas e muros de cemitérios. Tinha hábitos simples, como dormir no chão, pregava a castidade e a obediência.
Euclides da Cunha começou a escrever aos 18 anos para o jornal O Democrata e depois, para A Província de São Paulo, fundado em 1875, com o objetivo de promover campanha pró-República, com um programa de ação que mais tarde se incorporou em muitos artigos na Constituição de 1891. Um mês após a queda da Monarquia a Província passou a ter um novo título, O Estado de S. Paulo, mantido até os dias atuais. Euclides teve um contato direto com a empresa pertencente aos Mesquitas por cerca de duas décadas, com alguns intervalos. Dois artigos publicados, em particular ‘A nossa Vendeia’ (Uma alusão à revolução francesa), lhe deram fama.
Promessas falsas e aval da República
Credenciaram-no como correspondente para cobrir a Guerra de Canudos. O sucesso aumentou pelo trabalho com o qual ficou conhecido como grande repórter. A experiência e os textos ampliados e enriquecidos com novos dados resultaram no livro Os sertões. Alguns críticos afirmam ser o primeiro clássico da literatura brasileira, publicado em 1902.
Aos que se iniciam no jornalismo, a leitura da obra deve ter o privilégio de permanecer na cabeceira pelos ângulos abordados, que só um profissional experiente, com sensibilidade e cultura é capaz de produzir. Os tempos são outros, mas ninguém declarou uma cruzada ao bom texto. A boa escrita, tanto a de ontem como a de hoje, requer talento e dedicação, respeitando-se a escola e o estilo de cada época, sem prescindir da qualidade.
Verdadeira lição de jornalismo nos deu Euclides da Cunha, ao indicar o caminho do saber ou como se deve fazer a reportagem, ao olhar de perto os fatos, analisando-os, checando cada detalhe, para não incorrer em erros. A verdade acima de tudo. Euclides no início formou uma imagem negativa de Antonio Conselheiro, daí escrever contra o mesmo, considerando que este e sua gente mereciam uma resposta firme do governo. Ao acompanhar de perto os confrontos, que se deram em diversas cidades baianas, teve outra ideia, quando assistiu ao massacre dos sertanejos, à desigualdade de forças e compreendeu as mensagens pregadas pelo líder do movimento. Não era o que pensava. Descreveu os acontecimentos como se desenrolaram. Apelou à imparcialidade. A posição assumida levou-o a ganhar prestígio junto ao jornal e ao leitor. Reconhecer o erro é humano.
Euclides, certamente, deixou-se conduzir pelos boatos da Rua do Ouvidor, Rio de Janeiro, onde se concentrava a intelectualidade da época, entre outros Olavo Bilac e seu grupo de amigos. Eram indiferentes ao que se passava no sertão da Bahia. Nos jornais, faziam intrigas ao considerarem o Conselheiro uma vítima de distúrbio mental. ‘Merecia combate’. A insurreição tinha outro motivo: injustiça contra uma parte do Brasil ignorada, o Nordeste, sujeito à fome e à miséria. Os políticos apareciam com promessas falsas em época eleitoral e, pior, com o aval da República. Euclides teve essa virtude – denunciar esse outro lado do nosso território.
A tragédia da Piedade
Sobre Os sertões, quem dele se ocupou foi o escritor peruano Vargas Llosa. Confessou entender melhor a América Latina depois da leitura do mesmo e que sofreu uma forte influência. Tanto que escreveu A guerra do fim do mundo, o romance que consumiu mais tempo do escritor peruano. Acrescentou ainda Llosa:
(…) ‘Acredito ser esse um dos grandes livros da América Latina e, embora não possa ser chamado de romance, é um dos prodígios da narrativa.’
Euclides da Cunha morreu assassinado pelo major Dilermando de Assis no bairro carioca da Piedade, Rio de Janeiro, a 15 de julho de 1909. Sua mulher, Ana, o traía com aquele oficial, com quem teve dois filhos. Euclides, por questões de honra, dirigiu-se, ao retornar de viagem de trabalho, à casa de Dilermando, onde morava com o irmão Dinorah. Ao chegar ao lugar que procurava, encontrou lá Ana e dois de seus filhos e depois de bater desesperadamente na porta, anunciou:
‘Vim para matar ou morrer’
Depois de balear os irmãos por diversas vezes, Dilermando, campeão de tiro, ainda tentou amedrontá-lo e disparou a arma para atingir o pulso do escritor, para evitar matá-lo. Vendo o irmão ferido pelas costas e ele mesmo alvejado com dois tiros, não teve outra alternativa. Euclides não parava de puxar o gatilho. Dilermando viu-se forçado a usar a experiência. Fez a pontaria e o acertou mortalmente.
A tragédia da Piedade deu fim à vida de um dos escritores mais brilhantes da sua geração, mesmo usando um vocabulário difícil de se compreender, no início, mas eloqüente no pintar a paisagem, narrar os fatos e os personagens, com palavras e ideias geniais. Membro da ABL, ele podia oferecer mais, enriquecendo o universo do jornalismo e da literatura. Morreu aos 43 anos de idade. Lamentável.
******
Professor universitário e jornalista