O filósofo Hegel (1770-1831), um entusiasta dos ideais de liberdade e dignidade do homem, que acreditava ser o jornal a oração da manhã de todos nós, se decepcionaria com a mudança de hábito nos dias atuais. O que era fidelidade pela folha preferida transferiu-se, como opção movida pela ansiedade, para um outro meio. Continuamos agindo como Ícaro. O que vale é a pressa.
O diário impresso, esperado com expectativa, como quem espera o pão saído do forno logo às primeiras horas da manhã, vai, com uma velocidade que assusta, sendo substituído por um outro veículo, a internet, que progressivamente o ameaça por suas múltiplas funções. O mais tradicional e venerado canal de informação de todos os tempos deixa de ser no dia-a-dia o primeiro farol a apontar caminhos, para exercer uma função secundária.
Os profetas da mídia insistem num futuro sombrio para o jornal impresso. O surgimento de um meio multimídia, que reúne som, imagem, texto e movimento, em tempo real e com uma gama imensa de assuntos, apoiado nos recursos do telefone, do computador, do satélite e da informática, é uma realidade. Pelo andar da carruagem alguma coisa há de ser feita. O invento de Gutenberg, apesar de todas as transformações, precisa recobrar o prestígio e reviver os melhores momentos da sua história. Nenhuma mudança política se realizou no mundo sem a sua participação.
Pela manhã, a partir das 5h45, faço o meu cooper, antes, acompanhado de um grupo de seis amigos, na faixa etária que varia de 60 a 70 anos. Eu ficava surpreso com a conversa de todos eles. Mostravam atualidade com os acontecimentos do dia. Como madrugadores, esperavam o horário do encontro, lendo os jornais online. Quando partíamos para a nossa caminhada, falavam de assuntos que eu desconhecia. Tinha que calar ou saber os detalhes. Em certos momentos me sentia um estranho. Pertenço a um grupo de leitores, que prioriza o jornal de papel, sem desprezar a força da nova mídia, que me seduz e espanta pela velocidade e sua mão dupla.
Convenhamos, abrir o computador pela madrugada é dose. Temos de reconhecer que a humanidade caminha desse jeito. Não adiante remar contra a maré. O mundo deixou de ser dividido apenas entre pobres e ricos, para criar uma nova categoria de cidadãos, ou seja, os bem informados, que possuem condições para tanto, e os mal informados.
Somos levados a nos incorporar ao ambiente das tecnologias, sob pena de ficarmos marginalizados. Nada contra os que ainda usam as ‘pretinhas’ (jurássicas máquinas de datilografia), mas esta prática se constitui num atraso. No começo é difícil encarar o novo. O progresso da ciência e da informática é inevitável. Há quem aceite de imediato os avanços, enquanto os refratários negam. Existem os exagerados, pessimistas, que reagem. Uns fazem previsões descabidas.
Final feliz
Numa crônica com o título de ‘Fotojornalismo’ (13/1/1901), de Olavo Bilac, publicada no jornal Gazeta de Notícias, o cronista demonstrou insatisfação contra o contingente de desenhistas e caricaturistas, que começava a ganhar espaço nas folhas do Rio de Janeiro, sob a alegação: ‘o lápis destronará a pena: Ceci tuera cela’ [isto matará aquilo]. E acrescentou: ‘No jornalismo do Rio de Janeiro, já se iniciou a revolução, que vai ser a nossa morte e a opulência dos que sabem desenhar’. O poeta hoje se desesperaria com a tendência do uso e abuso da infografia, que corresponde aos recursos gráficos, que ajudam a entender melhor a informação.
Essa história contra o novo vem de longe. Perde-se na memória do tempo. Platão, usando os argumentos de Sócrates (que nada escreveu), século 5 a.C., com o surgimento do alfabeto, registrou em Fedro, desaprovação pelo mesmo, justificando: ‘Cria esquecimento na alma dos aprendizes. Sem usar a memória nada terão aprendido’. O domínio da cultura oral os levou a esse equívoco.
Aceitando ou não a novidade, a verdade é que o hábito de leitura do jornal vem caindo. Dados da Associação Nacional de Jornais (ANJ) de dezembro de 2003 revelam que entre 1999 e 2002 na grande São Paulo o índice de leitura baixou de 45% para 39%. Na grande Rio de Janeiro, caiu de 65% para 60%. Já na grande Porto Alegre subiu de 63% para 72%. Um fenômeno. Em Brasília o índice ficou inalterado. Somando-se esse problema a outros de natureza econômica e financeira, o complicador aumenta.
A crise não é só nacional. No exterior ocorre o mesmo. A imprensa inglesa em 2003 sofreu igual problema. O tablóide Daily Mirror registrou uma queda na circulação de 8,9%, enquanto o Sun diminuiu em 5,62%, e o Independent perdeu 3,5% dos leitores. Para quem vende milhões de exemplares é muito prejuízo. A circulação do Financial Time despencou; em 2000 vendia 215 mil jornais, já em 2003, caiu para 147 mil. Na França, Le Monde continua com problemas de caixa. Na Alemanha o Die Zeit prometeu fechar, com medo da concorrência que anunciou a fusão de jornais. No Brasil, no que se convencionou chamar de ‘grande imprensa’, os problemas são conhecidos, inclusive os títulos.
As causas são graves, ou seja: recessão na economia, concorrência no mercado publicitário com a nova mídia, banalização da informação, uso indiscriminado e com provedores de graça na internet, aumento do número de veículos de informação etc. O jornal, assim, perde o pioneirismo de ser o companheiro inseparável do café da manhã.
Quer queiram ou não, continua resistindo. Mesmo contrariando as previsões exageradas de Bill Gates, dono da Microsoft, que passou atestado de óbito do jornal, para o ano 2000… Errou. O jornalista Ricardo Noblat, no livro A arte de fazer um jornal diário ficou entre a certeza e a indecisão ao prever: ‘Os jornais, contudo, morrerão, sinto dizer-lhes, isso. Tal como existem hoje, tudo indica que morrerão. Só não me arrisco dizer quando’. O jornalista Pedro de Souza, de Paris, em texto para o Observatório da Imprensa (‘O empresário, o editor e o cavalo do inglês’, remissão abaixo), pergunta: ‘Será que a internet pode assumir todas as funções de um jornal de qualidade? Na realidade, a internet é o reino da informação pura e dura, é uma mídia fragmentada e individualista’.
Acredito no pensador italiano Sergio Lepri, com 30 anos na agência Ansa: ‘A informação impressa não pode morrer, na medida em que passe a ser mais reflexiva, de aprofundamento, que possa integrar as outras informações que recebemos de outros meios’. Se o lápis, que comemorou em 2003 os seus 240 anos de revolução e provocou protestos de Bilac, o que não dizer da internet, com pouco mais de 20 anos no Brasil? Ceci tuera cela… A internet matará o jornal?
Para evitar a tragédia, o jornal tem que ser reinventado. Apesar das muitas mortes anunciadas, terá um final feliz, e permanecerá para sempre. Nada substituirá o bom e respeitado jornal, cuja leitura pode ser feita no ônibus, avião, na praia ou deitado na cama. Eis aí o seu trunfo imbatível.
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(*) Professor universitário, jornalista e advogado