Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A ridicularização do povo

Logo depois de um teaser na escalada sobre felicitações do ano novo, no Jornal da Band do dia 31/12, Boris Casoy, o âncora, que é conhecido por seus comentários e pelo bordão ‘isso é uma vergonha!’, ridicularizou uma dupla de garis. ‘Que m… dois lixeiros desejando felicidades… do alto de suas vassouras… dois lixeiros… o mais baixo da escala do trabalho’, disse Casoy.

Minutos depois, uma enxurrada de posts no Twitter comentava o caso. No YouTube, internautas também se manifestaram. Entre as frases, usuários dizem que foi preciso uma falha na transmissão do sinal da emissora para revelar aquela que seria a verdadeira face dele: ‘Isso sim `é uma vergonha´. O Jornal da Band não devia ter um jornalista preconceituoso. Caiu a máscara deste que se sente melhor que seu semelhante. BORIS CASOI FORA JÁ [sic]’.

No dia seguinte, o jornalista lamentou o ocorrido. ‘Ontem, durante o programa, eu disse uma frase infeliz que ofendeu os garis. Peço profundas desculpas aos garis e a todos os telespectadores’, afirmou. Mas, como diz a sabedoria chinesa: ‘Há três coisas que nunca voltam atrás: a flecha lançada, a palavra pronunciada e a oportunidade perdida’. A oportunidade desta vez era de ter ficado calado.

Consciência crítica

Ao observar o vídeo, entende-se que a proposta ao exibir os garis era legitimá-los como representantes do povo naquele instante. Ao falar, era a parcela da população, que tem as mesmas condições sociais que eles, que estava falando. Portanto, o comentário de Casoy não se encerra na dupla, mas se estende a todos que trabalham em condições semelhantes. Também serve para indicar, por parte do jornalista, o desconhecimento de questões relativas à cidadania e à educação. É como se a sociedade fosse dividida por dois grupos: os dotados e os não-dotados do direito à fala.

O escritor uruguaio Eduardo Galeano já demonstrou preocupação com essa divisão de tratamento da imprensa. Em um texto que critica a cobertura da mídia sobre a epidemia da doença de Chagas, ele diz que há pessoas que são condenadas ao ostracismo por ‘não ter direitos e nem dinheiro para comprar direitos’.

Já Álvaro Vieira Pinto, um dos inspiradores do pensamento de Paulo Freire, lembra que a consciência crítica independe de conhecimento acadêmico ou científico. Assim, não importa a titulação que a pessoa possui, mas o que ela tem a oferecer a uma discussão.

De forma vil, Casoy reforçou a divisão social que perdura há anos e que está entrelaçada à história do conhecimento humano.

Órgãos reguladores

Segundo o filósofo Antônio Avilmar de Souza, no livro O Mundo Ensinou: Uma Reflexão sobre a Educação de Líderes Comunitários, existe uma dificuldade em estabelecer o princípio de isonomia entre todos. Esse paradigma faz com que o mais forte, o que tem mais conhecimento, subjugue o mais fraco. ‘Ao negar ao outro a condição do conhecimento, nega ao outro a própria possibilidade de ser humano, de se tornar humano’, avalia. Na mesma obra, é apresentada a história de Vilson Rodrigues da Luz, um catador de material reciclável, que freqüentou a escola até a oitava série, do ensino fundamental, mas que de forma singular é conhecedor dos livros de Marx.

O conhecimento de Vilson não foi adquirido em instituições de ensino, mas nos exemplares que encontrava no lixo. Curiosamente, o primeiro a encontrar foi O Príncipe, de Maquiável.

Para Frei Betto, é no momento em que o homem emerge da percepção da vida como mero processo biológico ‘para a percepção da vida como processo biográfico, histórico, o homem começa a fazer da sua revolta como um marginal e bandido um potencial de contestação política. Ele começa a situar-se como um ser político’.

Assim não se pode haver jamais uma distinção nos espaços democráticos por especialidade ou função social. Na televisão, não é diferente. Todas as emissoras estão submetidas a regras constitucionais. De acordo com o texto do artigo 221, no inciso IV, a produção e a programação atenderão a valores éticos e sociais da pessoa e da família. A subjetividade da redação não esclarece quais são os limites das empresas. Mesmo ao utilizar uma concessão pública para comentários ofensivos, o vazio legal no Brasil abre brechas para que ocorrências como essas não sejam mais bem apuradas.

Laurindo Leal Filho, no texto ‘Desafios da Comunicação para a Cidadania’, argumenta que o poder da televisão coexiste junto com uma legislação ultrapassada. ‘É bom lembrar que a televisão surge e se consolida no pós-guerra, num momento em que as democracias mundiais, seriamente abaladas na primeira metade do século XX, estão sendo reconstruídas. Enquanto os poderes constituídos vão retomando seu processo natural de consolidação, cai sobre eles um poder maior, que é o da televisão. As sociedades européias e a estadounidense, de alguma forma, já haviam estabelecido alguns mecanismos para controlar esse poder que se sobrepõe aos poderes constituídos. Basta lembrar a existência de órgãos reguladores nos Estados Unidos (FCC), no Reino Unido (Ofcom), na França (CSA) e em Portugal (ERC). No Brasil, até hoje não criamos nada semelhante’, explica.

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O vídeo com o comentário de Boris Casoy (31/12/2009)

 

O pedido de desculpas de Boris Casoy (01/01/2010)

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Jornalista e professor de Ética