‘Não faltará peixe na Semana Santa’. O título, em geral manchete de página, aparecia em quase todos os jornais, religiosamente (e o advérbio é bom para o assunto de que tratamos), ano após ano, no período que antecedia o período mais importante da liturgia católica. Ainda que a afirmação fosse sempre passível de dúvida — pois duvidosas eram as promessas dos peixeiros —, o título carrega em si uma realidade concreta: eram precárias as condições do mercado para garantir a distribuição de peixe na Semana Santa, quando a procura (as páginas de economia diriam ‘demanda’) por peixe aumenta muito.
Aumenta — não será despiciendo dizer, pois os adeptos de uma sempre ignoram quase tudo sobre a religião de outros — porque a tradição católica proíbe comer carne de boi ou de porco na Semana Santa (hoje a proibição no período restringe-se à Sexta-Feira Santa). Na outra ponta dessa proibição está, evidentemente, o aumento considerável por ela provocado na procura de peixe nos dias do período que culmina com a Páscoa. Em resumo, estamos diante de uma situação cujas características sempre repetidas, como em toda data religiosa anual, acabavam provocando ironias dentro das redações. Ironias, digamos logo, nunca contra a religião em si, mas contra as situações criadas, sempre iguais entra ano e sai ano, sempre um tanto insossas, por isso mesmo, para a reportagem.
Os problemas de abastecimento se agravaram muito com a Segunda Guerra Mundial, daí a repetição anual da manchete no caso do peixe (os homens do mercado da pesca gostavam de substituir peixe por ‘pescado’, palavrinha que ninguém usa em casa: é um termo técnico da corporação comercial). Nos anos que se seguiram à guerra, os problemas persistiram, daí a insistência na repetição anual dos títulos de jornais, insistência que inevitavelmente levava à ironia. Hoje não há mais problema quanto ao abastecimento de peixe. Mas, e quanto às outras festas que se repetem anualmente?
Não falemos no carnaval, que esse traz sempre novidades. Os novos enredos, os novos sambas-enredos, a riqueza dos carros alegóricos, os destaques de cada ala, as novidades nas baterias e, além dos desfiles das escolas, as diversas festas carnavalescas pela cidade (antigamente havia o Banho de Mar a Fantasia, na Praia do Flamengo), as figuras que chegam do exterior, tudo muda todo ano. Notícia diferente é coisa que não falta no carnaval. E quanto ao Natal? Surgiu há alguns anos a Árvore da Lagoa, pinta uma coisinha aqui, outra lá, mas, fora isso, o Natal, para os que trabalham nas redações, é sempre a mesma coisa. Porque a vida da cidade não muda nada, passa longe do Menino Jesus, de Maria e de José, afogados os três no meio do compra-compra-compra que é o objetivo da publicidade brutal do consumismo, a nos meter a todos numa roda-viva.
Na verdade, os anúncios só falam em ‘presente’, de certa forma um eufemismo para usar no lugar de ‘compras’. Quer dizer, de comércio. Quer dizer, de consumo. Machado de Assis, nosso genial romancista e contista que também cometeu suas poesias, pergunta na chave de ouro de um soneto célebre: ‘Mudaria o Natal ou mudei eu?’ Terá mudado o poeta, hão de responder os jornalistas que dão plantão nas redações nessa época do ano. O Natal não muda nada, ao contrário da Semana Santa em que o peixe deixou de ser problema.
Mudança de horário
Rigorosamente, só mudou o horário da Missa do Galo (e o bom leitor de Machado aqui há de voltar a ele e ao conto que leva esse título, discretamente sensual, em que o jovem agregado observa com sensualidade contida o ‘balanço do corpo’ e o pisar ‘mansinho’ de Conceição). Hoje, preocupados com a segurança de seus fiéis, os párocos rebaixaram a Missa do Galo da meia-noite para o prosaico horário das 20h, pouco mais, pouco menos. Que fazer, senão adaptar-se à sem-gracice?
Resta o ano-bom. Neste, as mudanças foram consideráveis. Conheço um redator que tirou muito plantão nessas festas e tinha de fazer força para não dormir. Havia os diversos bailes da virada de ano em clubes e hotéis luxuosos. Mas baile rende pouca notícia para jornal, ainda mais começando à meia-noite. E havia sempre uns grupos de umbanda que iam levar flores para Iemanjá na Praia de Copacabana. Isso dava, sem falta, um textinho para segundo clichê (denominação imprópria, hoje devidamente alterada para segunda edição) — e textinho poético, uma vez que se tratava de mar, da Rainha do Mar, de flores e dos trajes brancos da bela religião africana que nos trouxeram os negros.
Tudo isso foi crescendo e, hipertrofiada, a festa perdeu o seu lado ingênuo. De notinha de segundo clichê, virou atração de TV com seu foguetório, luzes, cores, cascatas de fogos, milhões de pessoas (dizem que 2 milhões: nunca entendi bem como se faz essa contagem). É transmissão ao vivo para o Brasil inteiro e para vários países. Algumas de nossas cidades grandes buscaram marcar sua passagem de ano com festa semelhante, mas lhes falta a graciosa curva de três quilômetros e meio da Praia de Copacabana, faltam-lhes os devotos de Iemanjá a jogar flores para a Rainha do Mar. Toda essa grandiosidade, entretanto, acabou virando rotina também. Rotina majestosa, só quebrada quando acontece alguma tragédia como a do Bateau Mouche — ai de nós, repórteres, sempre em busca de uma coisa diferente!
Hoje pedimos a Deus que nos dê muita rotina, sem nada diferente nessas festas que se repetem ao infinito. E originalidade para cobri-las sempre com um espírito novo — pois as pessoas são novas a cada noite de 31 de dezembro, novo é o espírito que se respira a cada passagem de ano, nova será sempre a esperança.
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Jornalista