Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A sociedade dos chavões

Semanas atrás falei da sociedade do espetáculo e seus entendimentos convergentes, uniformes e devastadores da realidade [ver remissão abaixo]. Verifico também uma outra variante: a sociedade dos chavões. Por mais que os manuais de redação determinem evitá-los, não podemos negar, os chamados clichês, modismos, chavões e lugares-comuns dominam a linguagem jornalística. Por seu caráter facilitador e reducionista, tornam-se peças de repertório sempre recorrentes. E o pior, são usados de forma indiscriminada para quem tem de escrever muito em pouco espaço de tempo.

Num mundo de respostas rápidas, os chavões caem como uma luva. A pedra que surge no meio do caminho é a tentação que este tipo de linguagem produz: conceitos enrijecidos pelo seu uso contínuo. Os desgastes acabam produzindo lugares-comuns de toda espécie. Na efervescência do deadline, estas expressões perdem o efeito, a originalidade e revelam como os redatores se apropriam de vocabulários – na maioria, transmitidos de maneira popular – e os estiliza, devolvendo-o ao público e, assim, criando um sistema de moto perpétuo. Em suma, é a linguagem do clone e da dízima periódica constante. Ao contrário do signo lingüístico e de sua contínua progressão e possibilidades de significados e sentidos nas diversas leituras, o clichê trabalha na ordem inversa: é o esvaziamento, a regressão, a escassez de simbolização e o sentido único.

Clichês do economês

Um dos ramos do jornalismo que mais se deliciam com o uso dos clichês é a economia. O economês usa termos clássicos como ‘estatais na UTI’, ‘abrir as comportas do Tesouro Nacional’, ‘acerte as suas contas com o leão’, ‘ataque frontal à Dívida Pública’, ‘este foi o tiro de misericórdia do Plano Real’, ‘o mercado está aquecido’, ‘exorcizamos o fantasma da inflação’ (o predileto do governo Lula) e por aí vai. Estampam manchetes, legendas dos periódicos e chamadas dos telejornais. Dos cadernos de economia vão direto aos discursos políticos, aos palanques presidenciais, à repartição pública, às filas de bancos, e caem na boca do povo. Nos dizeres de Cláudio Tognolli no livro A sociedade dos chavões: presença e função do lugar-comum na comunicação (Escrituras Editora, São Paulo, 2001): ‘Os chavões vão se legitimando nos processos de comunicação social e na mídia em geral, porque, cremos, já compõem significativamente a prática social, sem a qual o próprio código verbal não funciona’.

Várias naturezas

Esta prática na comunicação social não está presente somente em cadernos, revistas e espaços dos telejornais sobre economia. Como praga necessária, permeia todos os assuntos dos telejornais internacionais, nacionais e locais. Até os jornalistas mais experientes, os novatos e todos os meios, sejam revistas semanais, rádios ou jornais impressos, utilizam-se, e muito, deste expediente. Não há como negar. Também o esporte, a moda, a cultura, a informática, enfim todas as áreas se alimentam dos vários jargões existentes.

Um outro exemplo (2001), não menos clássico, no mundo da cultura da imagem, foi à repetição incessante das imagens dos choques dos dois aviões nas Torres Gêmeas. Este imprinting (o termo é de falecido pensador americano, Timoty Leary, e pode ser lido como ‘aprendizado rápido’) repetido à exaustão surtiu o efeito desejado, impregnando a retina das pessoas a aderirem de forma persuasiva à causa e a qualquer tipo de ação posterior por parte do governo (a situação caótica do Iraque está aí para não desmentir os fatos. Inclusive, estudiosos acreditam que este imprinting sensibilizou boa parte dos eleitores conservadores americanos, que deram a reeleição ao atual presidente Bush).

Em outras palavras, os chavões podem ser de várias naturezas, escrita, imagética, passando pela voz (quem não se lembra do Cid Moreira apresentando o Fantástico ou o Jornal Nacional?). Deságuam em todos os sentidos dos espectadores e consumidores de notícias. Este é outro aspecto da clichetização ideológica operada pela mídia.

O e-mail é a mensagem

O uso contínuo de jargões pela linguagem jornalística revela o desejo de certa intimidade com determinados assuntos. Veja o caso do Linha Direta da TV Globo. O próprio nome já revela o uso ‘íntimo’ que a emissora faz ao se apropriar da expressão ‘linha direta’. A velocidade de comunicação do telefone é o fio condutor para a delação anônima. Meio contraditório, mas é uma espécie de ‘intimidade anônima’. Por extensão, outro termo acompanha a ligação, o ‘Disque-Denúncia’. Com o ressoar dos termos Linha direta, ‘Disque-Denúncia’, ‘Mais um foragido da Justiça está atrás das grades’ e os índices de audiências conseguidos, provavelmente a emissora continuará com o programa por mais este ano. Afinal, o sucesso e a eficácia (a partir da matriz americana) estão no seguinte fato: em tempo recorde, vários bandidos brasileiros voltaram para trás das grades. Temos notícia de que, após duas semanas da apresentação do programa, foragidos foram capturados pela polícia. Além de telefonemas, a Globo afirma que recebe centenas de cartas e e-mails.

Todavia, não cabe condenar na totalidade os jargões, pois todos fazem uso deles. Atire a primeira pedra o jornalista que nunca usou o artifício. Em tempos de internet e na situação intrincada da contemporaneidade, dão o que pensar as palavras de Tognolli:

‘É preciso dizer: sem o lugar-comum não há como se operar os níveis da fala. Não se pode propor a sua eliminação no mundo atual. Onde se lia reflexão, hoje se lê rapidez e eficiência. Talvez McLuhan tenha se tornando incompleto: não só o meio é a mensagem. O e-mail agora é a mensagem.’

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Jornalista e escritor de Belo Horizonte, pós-graduado em Jornalismo Contemporâneo, autor de Pavios curtos (no prelo pela anomelivros)