Um retângulo de 22 metros de altura, formado por placas de mármore, ostenta 45 palavras sagradas:
‘Congress shall make no law respecting an establishment of religion, or prohibiting the free exercise thereof; or abridging the freedom of speech, or of the press; or the right of the people peaceably to assemble, and to petition the government for a redress of grievances’
Ou: ‘O Congresso não legislará no sentido de estabelecer uma religião, ou de proibir seu livre exercício; ou cercear a liberdade de expressão ou de imprensa; ou o direito de o povo se reunir pacificamente e dirigir ao governo petições para a reparação de seus agravos’.
Ao deparar com essas palavras, que parecem flutuar na fachada do transparente prédio do Newseum, o Museu da Notícia, em Washington DC, pensei: ‘Meus alunos precisam ver isso’. Ali estava eu, diante do texto-síntese da democracia norte-americana, a Primeira Emenda à Constituição, que reúne as cinco liberdades básicas daquela sociedade.
Clima marcado pela interatividade
Envolvido numa viagem de estudos sobre religião e juventude, não consegui furtar-me a identificar aquele painel como sendo a tábua da Lei da religião civil norte-americana. Esse culto ‘profano’ opera complexo amálgama com materiais de diversas procedências: mitos como o ‘destino manifesto’, pais fundadores, o ‘in God we trust’ da moeda, um feriado nacional em que todo mundo dá graças e comunga numa refeição edênica, espaços obliterados por estandartes com estrelas e listras, um calendário crivado de festas que culmina em dois meses regidos por um Santa ecumênico, vestido com um macacão cor de Coca Cola e que catalisa a mística desvairada do consumo patriótico. Dando liga a esse amálgama, uma lógica imperial e militarista permeia o cotidiano desse povo, seu lazer, modas, mentes, corações e religiões propriamente ditas.
Vibrando com o entusiasmo cívico que os cinco libertários mandamentos da Primeira Emenda suscitavam em mim, dou uma olhada nas primeiras páginas dos principais jornais norte-americanos, expostas na calçada da Avenida Pennsylvania e entro no prédio. Lá em cima, no enorme átrio, paira um helicóptero de notícias.
Logo sou conduzido por atenciosos monitores a um auditório onde se exibe um filme sobre o museu. O clima desse prédio é marcado pela interatividade, ao longo de suas 14 galerias e 15 auditórios, dos encontros com jornalistas e atividades de campo e do estúdio onde adolescentes e jovens brincam de participar de vários tipos de noticiário.
A dolorosa foto do urubu
Há um hilariante hall sobre a história da caricatura e quadrinhos de jornais. Também não falta humor ao filme que apresenta as respostas para um provocativo questionário: ‘Quais os direitos garantidos pela Primeira Emenda?’. Apenas alguns lembravam todos. Daí, a segunda pergunta: ‘E quais os nomes dos membros da família Simpson?’. Imagine o resultado… A descontração se completa nas paredes dos banheiros, decoradas por dezenas de azulejos com manchetes exemplarmente mal redigidas, como ‘Asteroid nearly misses Earth’ ou ‘Babies are what the mother eats’.
A pretexto de ‘cobertura dos grandes acontecimentos’, incomoda um pouco o tom ufanista presente em exposições sobre a queda do Muro de Berlim (oito placas e uma torre de vigia, todas reais), o nine-eleven, os 40 anos da chegada dos norte-americanos à Lua e ‘G-Men and Journalists’, patrocinada pelo FBI.
Em contrapartida, outras exposições apresentavam a oficina gráfica onde foi impressa a Declaração de Independência; exemplares originais de livros considerados marcos na história da liberdade; o caso Watergate; o memorial dedicado a pouco mais de 2 mil jornalistas (dentre eles 33 brasileiros), de 131 países, mortos no exercício da profissão. Os nomes de todos figuram numa parede de vidro com dois andares de altura.
Prestei íntima homenagem ao fotojornalista William Biggart, que correu para as torres do WTC e assim registrar sua queda. Impressiona também a coleção de fotos vencedoras do Prêmio Pullitzer (‘atenção pais: este material pode chocar seus filhos’) em que se fica sabendo que o autor da dolorosa foto do urubu esperando o pequeno africano morrer não aguentou a culpa por não ter espantado o bicho e pegado a criança agonizante no colo. Há também quiosques interativos sobre os dilemas éticos que os jornalistas enfrentam cotidianamente.
Liberdades fundamentais
No 5º andar está minha parte favorita: uma galeria que exibe a rica coleção de jornais do museu, seguindo a linha do tempo. Ao longo do percurso, dez telas interativas oferecem informações adicionais. Nas laterais, há vitrines com roupas e outros materiais que dão vida às notícias. Mais atrás, cinco pequenos auditórios apresentam vídeos sobre a luta pela igualdade racial, feminina, sobre esportes, Elvis e Woodstock. No térreo, um grande auditório exibe uma produção em 4D em que o público experimenta as imagens de fatos históricos como se estivessem acontecendo naquele instante.
Vale muito a visita a um museu vibrante e que celebra liberdades fundamentais, apesar das contradições. Ele também está disponível na web aqui e aqui.
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Jornalista, professor do Departamento de Ciência da Religião da PUC-SP