Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A tragédia sabida, mas não anunciada

Nasci em 5 de agosto de 1981, em Rio Piracicaba, e ali vivi até os 18 anos de idade. E espero que lá meus ossos descansem até se fundirem com a terra. Realmente gosto daquela pequena cidade do interior mineiro, de quase 15 mil habitantes, de clima ameno, de topografia amorrada, de um povo que se preocupa primeiro em atender para depois ser atendido.

No primeiro dia de 2008, minha estimada terra natal virou notícia em todo o Brasil e seu nome ricocheteou até em terras de além-mar. Oito detentos, confinados na cela 1 da cadeia pública do município, padeceram asfixiados pela fumaça de um incêndio que consumiu em poucos minutos colchões, cobertores, roupas e tudo mais que ali se encontrava. Os tutelados buscaram refúgio no minúsculo banheiro da cela e lá seus corpos tombaram entrelaçados, como se tivessem preferido morrer em conjunto, para assim enfrentarem mais corajosamente o golpe da foice que ceifará, cedo ou tarde, a alma de todos nós.

Encontrava-me na cidade quando o fato se deu e escutei várias histórias sobre o início da tragédia. A mais recorrente é a que diz que os presos iniciaram o incêndio para perpetrarem a tática de fuga conhecida como ‘cavalo doido’. Com o fogo, o carcereiro seria obrigado a abrir a cela para controlar as chamas e, assim que o fizesse, os oito detentos sairiam desgovernados e alucinados em direção à rua, que fica a menos de dois metros das grades. Eles só não contavam com a hipótese de que o mesmo não estaria presente no exato momento do início da ação.

Espalhou-se ainda pela cidade o detalhe de que os presos foram advertidos por um policial para que apagassem o pequeno fogo inicial, mas que não deram ouvidos à ordem, pois esta poria abaixo seu plano de fuga. Apenas reproduzo o que vem sendo dito pelos populares. Até o momento não há como saber se tal versão é verídica. O que há de certo é que a causa do incêndio não foi um curto-circuito na rede elétrica da cela, afirmação divulgada pelos peritos que avaliam o caso.

Anomalia foi chancelada

A grande imprensa mineira aportou em peso na cidade, causando um rebuliço que movimentou mais os moradores que as próprias festividades do réveillon. O frenesi tomou conta de todos. Entrevistas, versões, causas, culpados, familiares revoltados, olhares atordoados de curiosos, tudo emergindo num caldo de açodamento típico da prática jornalística atual. E, com o passar da cobertura, a própria imprensa começou a denunciar sua falta de faro e interesse para tragédias em gestação – que é o caso, especificamente.

Os jornais estamparam em suas manchetes frases como ‘tragédia anunciada’, ‘cadeia já estava condenada’, ‘justiça pediu interdição do prédio em 2006’ e por aí vai. Ou seja, a calamidade já havia sido desnudada pela justiça, mas, como sempre, o olhar das redações dificilmente ultrapassa suas límpidas a climatizadas instalações. Ora, não é trabalho da imprensa fiscalizar e denunciar os desvios do poder público? Não caberia a ela voltar à carga para o absurdo que vinha se desenhando há muito em Rio Piracicaba e que se repete em vários municípios país afora? É óbvio que sim. Mas aqui outro problema surge.

Seria pedir muito que jornais de Belo Horizonte, cidade localizada a 127 quilômetros de Rio Piracicaba, atentassem para o fato. Ora, se nem mesmo em sua alçada mais direta, que seria a própria capital, os jornais e demais veículos conseguem antever ou mesmo esmiuçar irresponsabilidades do poder público, o que dizer de uma pequena cidade que mal sabem onde fica?

E aí a anemia da imprensa local, interiorana, se mostra latente. Há dois jornais na cidade, de periodicidade mensal, que simplesmente não trataram do caso ou, quando trataram, o fizeram de maneira superficial, incompleta e com vários ‘dedos’, com a leveza de quem não quer e não pode atingir certas autoridades locais. Todos sabemos que, no interior, veículo de comunicação que não se alinha ao poder político vigente é veículo morto. A prefeitura de Rio Piracicaba era uma das responsáveis pela cadeia, num convênio firmado com o poder estadual. O carcereiro é um funcionário do poder municipal, contratado originalmente como trabalhador de serviços gerais. Não recebeu treinamento adequado para exercer a função, era um quebra-galho. E essa anomalia foi chancelada por ambas as esferas do poder público.

Sistema corroído e irresponsável

A cadeia já fora palco de várias fugas. Todos na cidade sabiam das condições precárias em que se encontravam as instalações do prédio, todos estavam carecas de tanto escutar que a cadeia da cidade era um verdadeiro playground, com denúncias de uso de drogas e inúmeras regalias permitidas aos presos. Foram poucas as vezes que os jornais locais se preocuparam com o tema, preferindo usar suas páginas com colunas sociais e amenidades que não estão na pauta prioritária de qualquer veículo de comunicação que se julgue sério e que respeite sua função social.

E assim caminha a capenga imprensa tupiniquim. Os grandes veículos, sediados nas capitais ou em prósperos centros urbanos, não têm disposição de averiguar, ou pior, não se preocupam com o que se passa nos rincões do Brasil. Na cabeça de seus publishers e editores, notícia de interior não vende, é menos importante. Do outro lado, os veículos locais procuram não se envolver em assuntos que atinjam o poder político local, com o medo de serem relegados no momento da partição do bolo publicitário assado com verbas públicas.

Apontar os culpados? Esta, sim, seria uma tarefa hercúlea, ante tão vasta gama de envolvidos direta e indiretamente nesse processo nefasto. No dia 1° de janeiro de 2008 oito pessoas, sob tutela do Estado, morreram devido às engrenagens desse sistema corroído e irresponsável. Aguardem! Muitos outros pagarão o preço da ineficiência, da falta de escrúpulos, da cegueira conveniente e da incompetência dos entes públicos, a imprensa incluída.

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Jornalista, Belo Horizonte, MG