Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

A Tribuna e a imprensa arrogante

Se quiséssemos escolher uma cor para definir o jornalismo praticado pela imprensa golpista, a dos jornalões, marrom seria a mais adequada. É a que melhor define o hábito de extorquir verbas oficiais – até de regimes militares que impõem a censura e querem ser tratados como democráticos e defensores da liberdade de imprensa. Ou não era assim que, durante 20 anos, O Globo retratava nossa ditadura militar?


A Tribuna da Imprensa rodava no prédio da rua do Lavradio desde o tempo de Carlos Lacerda. Nas duas décadas da ditadura, as empresas dos jornalões construíram uma coleção de prédios portentosos, no Rio e em São Paulo. Trabalhei como jornalista contratado em vários deles. Pessoalmente ‘inaugurei’ três. Com O Dia, em 1965, fui da Marechal Floriano para a Riachuelo. Com a Bloch, em 1967, da Frei Caneca para o Russell. Com o Jornal do Brasil, em 1972, da Rio Branco para a Avenida Brasil.


De O Globo, saí antes da mudança. Desde então o desprezo dos jornalões pelos que, pequenos e corajosos, optavam por resistir à ditadura e à censura, não se sujeitando em troca de verbas e favores oficiais, só fez aumentar. Os donos da mídia dedicada a construir impérios ficaram especialmente encantados quando o regime que matava e torturava rotulou de ‘marrom’ a imprensa sob sua censura impiedosa.


Prêmios indecentes aos covardes


A afirmação explícita, feita pelo ditador Ernesto Geisel, ainda é repetida em jornalões: ‘Só a imprensa marrom é censurada’. Há sete anos, o Jornal do Brasil fez igual julgamento referindo-se à Tribuna, fechada então por três dias, por decisão judicial precipitada. Era insólito, pois a família proprietária do JB o deixara falido anos depois de ter o chefão M. F. Nascimento Brito apostado no golpe de extrema direita do general Sílvio Frota (contra Geisel) e na promessa de ganhar o Itamaraty como prêmio.


Na verdade, a firmeza do compromisso dos Nascimento Brito e do JB com a liberdade de imprensa ficara clara já em 1971, num editorial publicado à época da visita do ditador Garrastazu Médici aos EUA. Atribuía-se ali a uma ‘campanha de difamação do comunismo internacional’ uma reportagem do Washington Post sobre tortura e violação dos direitos humanos no Brasil.


O autor da reportagem – Dan Griffin, que ainda estudante trabalhara no Brasil para o Peace Corps – pediu-me um exemplar daquela edição do JB contendo o editorial sob o título ‘Visão do Brasil’. Explicou-me que até então nunca vira uma reportagem dele ser contestada em editorial. Queria expor, emoldurada em sua sala, a página do editorial sabujo, que negava até a censura sofrida pelo próprio jornal. Não sabia que o dono do jornal ainda discursara na SIP (Sociedade Interamericana de Imprensa) atestando a existência de liberdade de imprensa no Brasil.


Assim eram – e ainda são – nossos jornalões e a imprensa golpista, que ironicamente adoram recordar a fase do golpismo lacerdista. Por isso eu só poderia me sentir bem ao trabalhar, como colaborador, redator, editor ou editor-chefe, para veículos rotulados de ‘imprensa marrom’ por Geisel ou ditadores iguais a ele na vocação autoritária, em diferentes países e épocas. Na Tribuna totalizei mais de um quarto de século. E antes tinha vivido experiências semelhantes em Opinião e no Pasquim.


Quem faz jornalismo marrom?


Nem esses e nem outros encontraram solidariedade nos jornalões arrogantes. Em 2001, ao ser a Tribuna de novo golpeada e impedida de circular em conseqüência de decisão judicial duvidosa, como no tempo da censura direta da ditadura, os jornalões apressaram-se a reviver o rótulo ‘imprensa marrom’ com que ela, OpiniãoPasquim, Movimento e até O São Paulo (da Arquidiocese) eram brindados pela ditadura.


Mesmo a atitude de um colunista de O Globo, que anos antes atacara covardemente o jornalista Helio Fernandes – só, desarmado e sem guarda-costa –, chegou a ser celebrada de forma perversa. Um texto opinativo e desmemoriado teve a pretensão de contar a história da Tribuna, mas escondeu dos leitores, por exemplo, ter ela sofrido 10 anos de censura enquanto os jornalões aplaudiam cada gesto torpe dos ditadores de plantão.


‘Imprensa marrom’ devia estar ainda na cabeça do editorialista que investiu num jornalão em 1971 contra o Correio da Manhã, vítima ao mesmo tempo, por sua resistência à ditadura, tanto da censura como do boicote organizado por grandes anunciantes e agências de propaganda. Pois o editorial na época garantia que o fim do Correio não se devia à pressão da ditadura e sim a ‘incompetência’.


Os jornalões acham que são eternos. Costumam ficar impassíveis quando são os irmãos menores os alvos do arbítrio. Mais corajosos, estes ousam resistir. Arrogantes, aqueles deixam de perceber que quando se desencadeia a violência contra os veículos alternativos, a intimidação é também contra os maiores – que podem ser os alvos seguintes, se não se comportarem.


Onde começa a liberdade


‘Por que recrudesceu a censura prévia contra nosso jornal precisamente quando fora suspensa em vários órgãos sob seu guante?’, perguntou o editorial do penúltimo número de Opinião, em abril de 1977. Ainda hoje é essa uma questão-chave para se entender tanto o mecanismo do controle da informação no Brasil dos generais como suas manifestações aparentemente menos racionais.


Medidas limitadas na aparência podem ter efeitos devastadores até sob regimes democráticos que proclamam respeito pela liberdade de expressão. Daí porque a falta de solidariedade dos veículos que só conseguem enxergar os que discordam deles como ‘imprensa marrom’, na ótica do general Geisel, é perigosa para a mídia como um todo.


Até meados da década de 1970 só havia espaço para artigos de Fernando Henrique Cardoso, mais tarde presidente, naquele Opinião englobado no rótulo de Geisel. Como FHC, também outros sociólogos, economistas, cientistas políticos, escritores, jornalistas e acadêmicos de diferentes áreas, críticos dos rumos duvidosos do país, manifestavam-se apenas através desses veículos.


Escrevi sobre isso em 1985, depois da posse do primeiro governo civil. Achava então terem os jornalões aprendido a lição. ‘Ameaças e restrições, mesmo quando visam diretamente publicações menores, alternativas, que poderosos e arrogantes chamam de `imprensa marrom´, atingem a liberdade como um todo, ainda que alguns se julguem no primeiro momento fora de seu alcance’, observei.


Eu estava enganado. Os jornalões nada aprenderam. Nunca aprenderão.


 


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Jornalista