Vivendo no contexto de uma corte marcada pelas intrigas, no século 17, Baltasar Gracián escreveu um verdadeiro manual de sobrevivência intitulado A arte da prudência, no qual, pura e simplesmente, aponta para os meios por ele empregados para não cair nas armadilhas que, freqüentemente, vinham ao seu encontro. A palavra demasiada ou a palavra imprópria ou a palavra que admita significados diferentes são, por vezes, o estopim de sangrentos combates. Raramente se está disposto a ir além das paixões que elas provocam. Quaisquer palavras podem, por mais inócuas que possam parecer, virar autêntico desafio, dependendo do contexto em que pronunciadas ou, conforme as disposições do receptor, a própria simpatia ou antipatia de quem as enuncia.
Gostaria, aqui, de sistematizar e desenvolver algumas observações contidas em texto de Luciano Martins Costa intitulado ‘A imprensa não estimula a inteligência‘. Como sói acontecer com os trabalhos do articulista em questão, surgiram comentários dos mais variados matizes – alguns, visando a enfrentar o próprio tema do artigo em si; outros, aproveitaram a deixa para exprimirem os times de seus amores e de seus ódios – no País do Futebol, esta metáfora é realmente expressiva. A veiculação do artigo que ora se comenta, no meu modestíssimo entender, é mais uma demonstração do caráter pluralista do Observatório porque o que está em questão, aqui, é o engajamento com a despartidarização da análise dos fatos.
Desmistificando estereótipos
E tal percepção se reforça pela passagem seguinte do trabalho em questão: ‘Ao permanecer na superfície dos fatos, a imprensa deixa de estimular a inteligência do leitor e sua busca por explicações mais satisfatórias para certos acontecimentos. Ficamos, assim, presos ao velho e batido viés que reproduz um confronto ideológico sem sentido na complexidade do mundo contemporâneo.’
O que significa ‘ficar na superfície dos fatos’? Significa, simplesmente, tratar os fatos sob um ponto de vista muito próximo da narrativa de ficção, em que eles vêm acompanhados somente pelo necessário a manter a coerência do enredo e da valoração que se quer que o receptor a respeito deles faça: algo como uma reprodução dos seriados que eram muito comuns da década de 60, em que a indagação mais profunda que se poderia fazer, para que o entretenimento não viesse a se descaracterizar como tal e a se tornar enfadonho, era a da identidade secreta do super-herói.
De tal sorte que a questão já não é mandar quem quer que seja calar-se, mas sim, ir ao mérito das proposições sem o prévio filtro da conformação pelo que é útil a quem está a proceder à análise. Numa palavra, o ideal weberiano de ir aos fatos, ainda que sejam inconvenientes para o pesquisador e que, modo certo, atualiza a frase de Pamina em A flauta mágica, ópera de Wolfgang Amadeus Mozart e Emmanuel Schikaneder, vertida para o cinema por Ingmar Bergman, exibida nos cinemas brasileiros em 1976, que desmistifica dois estereótipos, quais sejam, o da ópera como espetáculo ‘elitista e hermético’ (é da leveza de um conto de fadas, do modo que Bergman a conduz) e o de um Bergman como cineasta ‘para iniciados’.
Déficit, superávit e dívidas
Dificilmente um veículo tradicional publicaria um texto que ultrapassasse qualquer das necessidades de legitimação narcisística do setor das grandes corporations midiáticas. Mesmo uma publicação engajada com a esquerda dificilmente publicaria qualquer texto que pretendesse romper os limites deste dualismo reducionista.
Quando da queda do Muro de Berlim, em 1989, veio a ser proclamado o fim da História, com a vitória permanente da liberdade de mercado. Havia uma prática unanimidade da denominada ‘grande imprensa’ no sentido de que o fracasso da experiência soviética implicaria a quantos tivessem bom senso a interdição mesmo ao debate do caráter sempiterno do capitalismo. O fato, em si, não era prova da inquestionabilidade deste e seu caráter de nec plus ultra, pois apenas demonstrou a inviabilidade de uma das alternativas que se colocavam – alternativa, por sinal, das mais indesejáveis, por conta da própria idéia de dissolução do indivíduo em meio à massa que pressupunha.
Havia a divulgação de uma visão quase escatológica a respeito da instauração de um paraíso terrestre do mercado, como se o crack de 1929 tivesse sido um mero acidente de percurso e nada estivesse, até então, ocorrendo no restante do mundo. Na Europa mesma, o capitalismo tivera de se ‘humanizar’, como o comprova a Constituição de Weimar, de 1919, de cuja feitura participou Max Weber e cuja influência tem sido estudada entre nós pelo professor Giberto Bercovici, da Faculdade de Direito da USP. Quer dizer: já não era mais o caso, mesmo depois da queda do Muro de Berlim, de reduzir a humanidade aos seres que tivessem serventia para o mercado.
Em 2008, o triunfalismo do discurso ‘neoliberal’ também veio a arrefecer, como a demonstrar que a lógica binária em que o mundo se debateu durante a Guerra Fria precisa ser superada no âmbito da compreensão das relações de poder. Quanto a isto, merece meditação o que escrito por Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo [‘Os antecedentes da tormenta’, in: http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=15276&alterarHomeAtual=1, acessado em 7 out 2008], quando recorda que a reforma proposta por John Maynard Keynes e Dexter White previa a utilização da moeda internacional como simples moeda de conta, de tal sorte que os países que tivessem déficit registrassem num banco internacional, nas respectivas contas, a dívida com os demais, fazendo com que a compensação entre déficit e superávits tornasse despicienda a movimentação de capitais para saldar dívidas.
Decretada a inconversibilidade
Tal sistema teria sido visto com reservas pelos EUA e pela Inglaterra, mas, ainda assim, teria o acordo de Bretton Woods permitido que, do final da II Guerra até meados da década de 80 fosse exercida pelos países a prerrogativa de controle do fluxo de capitais, com o que puderam salvaguardar as respectivas autonomias na formulação da política monetária e fiscal.
Contudo, a mudança no panorama das relações econômicas internacionais consistiu no trânsito livre de capitais em busca de economias que lhes permitissem uma remuneração maior com o menor risco físico possível.
Por esta razão, ter-se-ia tornado uma blasfêmia falar em controle de capitais e os investimentos de empresas cujo centro de decisões se caracteriza pela mobilidade se fazem no mercado financeiro, com preferência sobre a produção de mercadorias. A lógica seguida pelos reformadores de Bretton Woods radicaria em dotar de alguma previsibilidade a taxa de juros – indicador ao agente econômico acerca de melhor convir poupar, investir no mercado financeiro ou na atividade produtiva – e a taxa de câmbio – indicador da riqueza efetivamente existente a partir da mais aproximada paridade com a moeda de referência internacional –, lógica esta que teria permitido que mediante o controle de capitais durante os anos 50/60 economias pudessem crescer de modo menos traumático, que se teria caracterizado pela formação de um capitalismo tutelado pelo Estado e teria perdido um de seus pilares a partir do momento em que a moeda de referência internacional – o dólar dos EUA – passou a ter incrementada a sua emissão para atender às necessidades militares do país onde era adotado como moeda nacional – meados da década de 60, coincidindo com a Guerra do Vietnã.
Em virtude do grande volume de dólares, excedendo o total exigido para o comércio internacional, passou a ser questionada pelos europeus a prestabilidade do dólar como moeda internacional de referência e, ao ser proposta pela França a troca dos excedentes pelo ouro de Forte Knox, em 1971, o presidente dos EUA decretou, de modo unilateral, a inconversibilidade.
Perda de competitividade
Por conta da desconfiança dos europeus com o dólar, formou-se o Euro Mercado, pelo qual se expandiam os negócios financeiros ao largo da fiscalização das autoridades monetárias e cujas taxas de juros eram baixas, motivando alguns países, como o Brasil, em tempos de milagre, a se endividarem maciçamente em dólar junto a ele.
A derrota política e militar sofrida pelos EUA no Vietnã parecia apontar para o fim da supremacia norte-americana no mundo ocidental. Mas o respectivo governo procurou adotar medidas para o enfrentamento de tal comprometimento de sua situação de supremacia. Além da decretação da inconversibilidade, os EUA, em 1973, viriam a instaurar a flutuação cambial, determinando, com isto, o aumento do preço do petróleo, que era fixado em dólares, e que tradicionalmente foi apontado como o fator que teria posto em xeque o sucesso econômico do ‘milagre’.
Além disto, já à época de Reagan, foram elevadas as taxas de juros e realizada uma redução de impostos voltada a favorecer os mais ricos e a classe média alta e, a partir de 1981, viria o declínio das taxas de juros, iniciando um ciclo de consumo e importações nos EUA, que tiveram como principais provedores Japão, Coréia e Taiwan até 1985 e o governo norte-americano não se viu às voltas com problemas na balança de pagamentos por deterem o controle da moeda de referência.
O déficit dos EUA passou a ser financiado por papéis do Tesouro que eram trocados com os bancos privados por créditos contra os países latino-americanos, quando a elevação da taxa de juros provocou a crise da dívida externa na América Latina, com o que o sistema financeiro dos EUA foi salvo pelo déficit tão execrado no credo monetarista. A partir de 1985, os EUA comunicaram a impossibilidade de ser aumentado o respectivo déficit e a necessidade de tornar suportável a carga para a sua indústria nacional, que estava a perder competitividade, de tal sorte que era chegada a hora de seus parceiros fazerem um sacrifício.
Debate superado
O Japão teria sido obrigado a reduzir lucros, cortando custos e deslocando-se os capitais respectivos para os países do Sudeste Asiático, rendendo ensejo o surgimento dos denominados ‘tigres’. A economia dos EUA, na era Reagan, se teria baseado mais na expansão do consumo do que na do investimento e, no período mais recente, dos mercados financeiros desregulados, a taxa média de expansão teria sido menor do que a dos anos 50/60, mesmo tomando em consideração o crescimento verificado a partir de 1995/1996, quando se verificou um ciclo de investimento e consumo baseado numa forte concentração de capitais, tendo como propulsor o mercado de crédito, que conduziu a um alto grau de endividamento dos particulares.
A valorização dos valores mobiliários estimulou famílias e empresas a adquirirem tais papéis e a, na crença de haverem aumentado o respectivo patrimônio, terem incrementado a respectiva propensão a consumir, endividando-se ainda mais e ofertando tais papéis como garantia, sendo bruscamente surpreendidas pela queda do valor dos seus títulos e pela elevação dos preços dos bens e serviços, aumentando-lhes o passivo e corroendo-lhes o ativo. Assim, a raiz da crise norte-americana desde 2001 estaria em que as empresas e as famílias, respectivamente, cortariam investimento e consumo no aumento da relação entre as dívidas e o patrimônio, implicando o estabelecimento de um cenário de aumento de desemprego, que determina uma contração tanto do crédito a ser concedido como da renda disponível, conduzindo a um novo patamar de restrição de gastos.
A sustentação deste padrão de crescimento pelos EUA teria sido decorrente de sua capacidade de atração de capitais excedentes de todo o restante do mundo e, mesmo com a queda da Bolsa e o declínio das taxas de juros, não se registra uma fuga de capitais.
Qual teria sido, ao final, a moral da história? Simplesmente, aquela que o conselheiro Acácio, personagem do Primo Basílio, de Eça de Queirós, identificaria, isto é, que o debate entre as facções do ‘capitalismo’ e do ‘comunismo’, nascido no século 19 e que permeou o século 20, está superado, embora os problemas da Humanidade ainda necessitem de uma solução que a ambos superem, do mesmo modo que o ‘capitalismo’ veio a superar o sistema econômico ‘feudal’.
Triunfalismo não é a melhor postura
Não há como deixar de concordar com o que, salientado por um dos mais lúcidos colaboradores do Observatório, ao proceder à crítica do modo como a mídia se comportou neste período, atuando como se fora apóstola de uma religião laica: ‘Entre fins da década de 1980 e limiar dos anos 1990, o `discurso da globalização´, após haver sido pensado em tempo anterior, foi disseminado por todos os continentes. A imprensa apenas cumpriu o papel de informar de modo acrítico. Diferente não procedeu quando da germinação de um novo dogma: a capacidade de regulação do mercado, sem a ingerência do Estado. Como terceiro aspecto, disseminou-se a nova e inquestionável máxima acerca da construção do `Estado mínimo´. Políticos, em diferentes partes do mundo, foram eleitos sob o amparo dessa `retórica dominante´. Afora debates que eram travados no circuito fechado do pensamento acadêmico, nada de maior expressão, no âmbito jornalístico, foi alvo de abordagem crítica. O processo evoluiu até o `estouro da bolha´. Agora, após as mutações, com os desastres que ainda prosseguirão, surge uma mídia `assustada´ para alarmar quanto a maiores perigos no horizonte próximo. Agora? É tarde. Lá, há década e meia, a omissão da `vigilância jornalística´ colaborou, por meio do silêncio, com interesses que viabilizaram privatizações em larga escala. As páginas de economia refletiam o sucesso de instituições financeiras com a obtenção de lucros astronômicos. Agora, o resultado, nos mais diferentes países, consiste em o `Estado mínimo´ injetar bilhões de dólares para evitar um colapso incontornável. O único problema é que, no atual cenário, quem paga a conta são os cidadãos contribuintes. O montante que os governos estão repassando para o `mercado´ é a `moeda´ subtraída das populações assalariadas’ [Lucchesi, Ivo. ‘O ritmo da história e o tempo do jornalismo‘.].
O que significa dizer que o triunfalismo, em qualquer dos campos, não constitui a melhor postura, simplesmente porque as crises somente revelam que é o momento de pensar, e não o de confrontar crenças.
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Advogado, Porto Alegre, RS