A Rede Bahia, afiliada da Globo, constantemente ratifica sua ‘vocação’ de porta-voz da ideologia dominante. Em reportagem que abordava a distribuição de remédios pelos centros de saúde públicos – estaduais e municipais – exibida na quarta-feira (8/7), no programam Bahia Meio Dia, o apresentador deu mais uma demonstração quando afirmou que os medicamentos são distribuídos ‘de graça’ à população. Por que ‘de graça’, se o cidadão paga imposto e, portanto, tem direito a esse benefício?
Os meios de comunicação de massa – em especial, a televisão – têm desempenhado um importante papel no que se refere à construção e reprodução de discursos altamente nocivos à sociedade, uma vez que contribuem para dificultar, para a maioria dos indivíduos, a percepção de si enquanto portadores de problemas, de demandas e, sobretudo, criam barreiras para que estes mesmos indivíduos possam enxergar as complexidades das relações sociais cotidianas.
É imperativo direcionar especial atenção à construção e disseminação dos discursos midiáticos no sentido de analisá-los do ponto de vista dos ‘ingredientes’ ideológicos. Quando se diz ‘de graça’, sugere-se, com isso, que as pessoas não estão pagando por esse benefício, através dos inúmeros impostos diretos e indiretos. É como se o Estado (neste caso, os governos estadual e municipal), através dos dirigentes, estivesse realizando uma doação, e não uma contrapartida que, diga-se de passagem, é bastante questionável, pois essa mesma reportagem mostrou que, em muitos casos, os medicamentos não chegam aos pacientes necessitados.
Uma esmola, não; um direito
É imprescindível atentarmos para o fato de que as ideologias dominantes nas sociedades são oriundas de elaborações de discursos que pretendem universalizar a identificação da realidade a partir das perspectivas, dos prismas da classe dominante, que consequentemente tendem a dissimular as contradições.
Neste caso em particular, quando o jornalista usa a expressão ‘de graça’, sugere que o cidadão não está recebendo um direito, mas uma ‘esmola’, ou um ‘favor’, dificultando a compreensão de que não somente ele (o cidadão) tem direito ao benefício, mas que o Estado tem a obrigação de assisti-lo em suas necessidades básicas. Isso está descrito no artigo 196 da Constituição Federal de 1988: ‘A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para a promoção, proteção e recuperação.’
A possibilidade de exercer a cidadania
E se o Estado tem obrigação, o cidadão tem o direito de receber e de pressionar os representantes deste Estado no sentido de atender suas necessidades, considerando justamente as contribuições da cidadania através dos impostos cujos recursos devem ser direcionados ao bem-estar social – neste caso, a saúde, que constitucionalmente é colocada como uma prioridade.
Logo, quando a Rede Bahia usa a expressão ‘de graça’, colabora para dificultar a percepção dos indivíduos enquanto sujeitos sociais conhecedores de suas realidades, o que diminui, sobremaneira, as possibilidades de intervenção destes no sentido de fazer valer a sua cidadania.
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Doutora em História da Comunicação pela Universidad Complutense de Madrid, professora da Faculdade 2 de Julho e da rede estadual de ensino, em Salvador, BA