Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

A verdade que vem impressa nos jornais

Na minha primeira mocidade, no Ceará dos anos 1970, fazia muito sucesso a polêmica coluna de Claudio Pereira, ‘Patrulheiros Toddy’. Em uma época de total irresponsabilidade, bem distante dos modernos tempos do politicamente correto, Pereira publicava os maiores absurdos sobre a vida de seus desafetos, mas, sobretudo, de seus afetos, que, por vezes, em decorrência do material publicado, se converteram em desafetos. Quando questionado sobre a veracidade das informações, Pereira sempre dizia: ‘Saiu no jornal? Se saiu no jornal, então é verdade’.


Brincadeira à parte, meu velho e moleque amigo se referia ao fascínio que a folha impressa exerce sobre as pessoas. Quem escreve de vez em quando para os jornais sabe avaliar que diferença faz mostrar a alguém um texto digitado em uma folha comum ou mostrá-lo já impresso na página de opinião de um grande jornal.


Diante do impresso, as críticas que o original receberia são, geralmente, feitas com muito maior cuidado.


Guerra de insultos


A palavra impressa tem um peso tão considerável que o critério para avaliar a tendência autoritária de um governo são as medidas que toma para cercear a publicação e a circulação dos jornais. No Brasil colonial, a impressão de livros e periódicos era totalmente proibida. Os que se aventuravam nesse tipo de empreendimento pagavam caro: além da apreensão de seus prelos e tipos, pesada multa e imediato regresso a Lisboa para se entenderem com as autoridades.


Quando finalmente, depois da vinda da corte, em 1808, começou-se a imprimir no Brasil, a censura ainda vigorava com força total. A chegada do liberalismo, após a Revolução Constitucionalista do Porto, de 1820, produziu interessante debate entre os que, como José da Silva Lisboa, viam a liberdade de imprensa como danosa para a nação e terreno propício à calúnia e os que, como Hipólito da Costa, advogavam sua total liberação. Silva Lisboa, então chefe da censura na Impressão Régia, defendia seus interesses e, bom amigo do trono e do altar, os da coroa.


Hipólito, que escrevia da Inglaterra, respirando as liberdades garantidas pelo sistema constitucional inglês, procurava demonstrar que os boatos que corriam de boca em boca eram mais daninhos que os impressos – estes podiam ser facilmente refutados, pois constituíam provas em processos por calúnia.


Essa precoce discussão sobre a liberdade de imprensa que marcou o alvorecer do nosso jornalismo foi sucedida por uma fase de intensa disputa entre jornalistas de várias tendências em torno do modelo político que cada um considerava mais adequado para a jovem nação que surgia.


Nesse debate fundador, a imprensa foi ao mesmo tempo palco, ator e público-alvo. Campo de embate de opinião, laboratório de idéias, mas também de uma nova ordem legal cujos contornos ainda não estavam bem definidos, a imprensa brasileira da Independência caracterizou-se, entre outras coisas, por uma guerra de insultos entre jornalistas. O direito ao anonimato que então vigia garantiu a impressão de textos fortes, alguns até mesmo rebarbativos, como os que se atribuem ao primeiro imperador. Porém, pelo estudo desses impressos, podemos entender hoje as motivações de seus autores, as paixões e os interesses que orientaram suas ações.


Paixões e interesses


O aspecto interessante dessa guerra de impressos é a consciência que tinham seus redatores de que aqueles escritos se destinavam à posteridade.


De que eram protagonistas de um momento histórico importante e que era preciso garantir desde aquele instante a divulgação de seu papel no desenrolar dos acontecimentos.


Ao mesmo tempo, podemos constatar que, como meu amigo Claudio Pereira, eles sabiam que o fato de uma informação estar impressa no jornal contribuía muito para lhe dar credibilidade. Daí o cuidado que tinham em exaltar seus próprios feitos e diminuir os dos adversários, em atacá-los propagando sobre eles informações negativas – verdadeiras ou falsas.


Cabe ao historiador de hoje a tarefa de vasculhar e interpretar esses jornais resistindo ao fetiche da página impressa e cotejando as informações com as constantes em outras fontes.


Assim, recomenda-se ao leitor contemporâneo lembrar que não há texto neutro, que, na composição e no desenvolvimento de um texto jornalístico, na maneira de narrar e destacar um fato, estão também embutidas as paixões e os interesses do jornalista, do editor ou da empresa jornalística a que estão ligados. De modo que nem sempre o que sai no jornal é a expressão genuína da mais pura verdade.

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Doutora em ciência política pelo Iuperj, historiadora da Casa de Rui Barbosa no Rio e autora de Insultos Impressos: A Guerra dos Jornalistas na Independência (Companhia das Letras, 2000).