A decisão do Supremo sobre biografias não autorizadas supera amplamente o espectro desse tipo de obra. Ela elimina um instrumento censório, francamente inconstitucional, que existia há tempos, mas que ganhou notoriedade desde que um cantor com a mídia de Roberto Carlos decidiu que, por seu próprio capricho e passando por cima da organização constitucional do país, só seriam publicados no Brasil os livros que contassem com seu próprio nihil obstat.
O Rei da Jovem Guarda fez o que quis. Teve por algum tempo o apoio de artistas de prestígio, como Chico Buarque ou Caetano, até que eles próprios percebessem o absurdo que estavam defendendo e pulassem do barco. Mas não faltaram juízes envolvidos na ação à caça do autógrafo do Rei — um precedente não visto mesmo em comédias de Sacha Cohen. Tudo facilitado pela a intimidação de uma grande editora, que não hesitou em concordar que milhares de livros já distribuídos fossem recolhidos nas livrarias, no melhor estilo do III Reich.
Um dos aspectos mais notáveis da decisão do Supremo, no entanto, é que ela abre caminho para que documentários cinematográficos brasileiros não tenham mais que se sujeitar à pecha da chapa-branca. Essa é uma grande revolução na produção de documentários cinematográficos no Brasil. Uma revolução tão grande, na verdade, que até agora não foi convenientemente assimilada pelos produtores e diretores.
Filmes, ao contrário de livros, custam muito caro para ser feitos — e antes da decisão do dia 10 de junho documentários só podiam falar sobre pessoas que aquiescessem com isso e com cada detalhe do conteúdo criado — desprezando solenemente a legislação criminal que prevê no Brasil crimes de calúnia, difamação e injúria.
É assim, por exemplo, que documentários são feitos nos Estados Unidos. O filme é realizado e quem se sentir ofendido por ele tem toda uma legislação para se apoiar em sua defesa. Fosse de outra maneira, não poderiam ter sido realizados, de saída, os documentários que ganharam o Oscar de 2014 (“Citizen Four”, sobre o ex-agente da CIA Edward Snowden), ou o de 2010 (“Trabalho interno”, sobre a crise financeira internacional de 2008).
Cerca de 40 documentários para cinema são realizados todos os anos no Brasil e é desonroso para os realizadores saber que neles nada pode haver de crítico ou mesmo revelador, mas apenas o que contar com a concordância absoluta do objeto, seja ele um mensaleiro, um corrupto condenado pela própria Justiça ou um estuprador.
O Supremo abriu caminho para que, doravante, os documentários brasileiros possam ser menos subservientes e mais críticos, mas reveladores, cumprindo o que se espera de um documentário de verdade.
Muitos espectadores estão acostumados, não sem razão, à ideia de que documentário é o gênero de cinema que fala sobre aves em extinção; que, em documentários, o que pode existir de mais ousado é um plano próximo de um vulcão em erupção. Pois não é bem assim. A nova legislação abre caminho para que, rigorosamente dentro dos limites da lei, o documentário cinematográfico possa oferecer denúncias, mostrar o outro lado, além do desejado pelo documentado. Abre-se assim um caminho inédito para que documentaristas brasileiros possam falar de um mundo de verdade e não ficarem resignados a ter que criar mil estratégias para não ter que fazer infinitos filmes sobre a chegada da primavera.
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Nelson Hoineff é cineasta