Na Quarta-Feira de Cinzas (6/2), início da Quaresma, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) lançou a Campanha da Fraternidade 2008 com o tema ‘Fraternidade em defesa da vida’ e o lema ‘Escolhe, pois, a vida’. Daí em diante, uma constante ação de propaganda foi feita pela igreja católica em anunciar, refletir e apresentar à sociedade algo que está na ordem do dia: a questão ética sobre vida humana.
Desde 1963 a CNBB lança à discussões na sociedade assuntos muitas vezes marginalizados, esquecidos e superficialmente apresentando pela agenda setting. Esta instituição goza de um status ético, moral, social, político, científico e humanitário capaz de mobilizar socialmente o Brasil.
O objetivo deste artigo é apresentar uma breve reflexão sobre o discurso, ou seja, fazer uma Análise do Discurso (AD). Leva-se em conta determinados sigmas, o autor ou locutor, os elementos de discursos e o espaço social em que eles foram reelaborados. Interessa ainda dizer que a AD é um instrumento do estudo de comunicação para dizer como o discurso é apropriado nos processos comunicacionais, especificamente no jornalismo:
‘Provavelmente, um dos conceitos mais importantes cunhados na linha dos estudos culturais seja o de struggle over meaning. (…) trabalha a idéia de que, no espaço social, há disputas de interesses e de idéias, as quais se traduzem nas manifestações do simbólico em disputas de significados não determinados. Ou seja, os significados não estão determinados, eles estão em aberto, sendo trabalhados por produtores e consumidores’ [Cavalcanti, Alberto R.; Lima, Venício. ‘Mídia poderosa, comunicação … nem tanto: pistas teóricas para o comunicador profissional’. In : Communicare – Revista de Pesquisa do Centro Interdisciplinar (CIP) de Pesquisa da Faculdade Cásper Líbero, São Paulo. 2º semestre. n. 2. 1998. p. 33].
Quem acompanha este Observatório percebe que há debates intensos acerca do discurso científico e sua propagação. Ao ler o artigo de ‘CNBB vai às compras’ do jornalista Marcelo Leite, na Folha e S. Paulo (10/2/2008), levantam-se novas/velhas questões acerca da ciência, seu discurso e o contexto atual. No artigo, ele analisa o discurso do texto-base da Campanha da Fraternidade 2008. Tal como se diz, ele se encontra numa posição privilegiada e temerária: onde se combate os ‘exageros da propaganda da biotecnologia’, mas ‘é incômodo flagrar-se na companhia de conservadores religiosos’.
Prática cotidiana
Ora, as ações atéias ou religiosas e sua discussão são travadas num terreno comum dessas duas dimensões ideológicas, a filosofia. No entanto, hoje, mais que tudo, ela se apresenta na mídia. Porque, desde a revolução científica por volta do século 15, ou mesmo após ‘separação’ entre ciência e religião, no século 13, a filosofia se tornou o campo ideal para tal discussão. Mais ainda: sob esse resgate histórico, deve-se lembrar que os grandes cientistas fundadores da ciência moderna foram homens de fé profunda e de práticas religiosas cotidianas. Ciência e fé não estão muito longe uma da outra; exemplo disso é o próprio discurso da CNBB, onde fé e ciência estão envolvidas para construção de argumentos em prol do tema ‘Vida’.
Assim, observa-se que a ciência e a religião, ao narrar a vida, devem caminhar juntas. Apesar de ter linguagens, objetivos distintos e de muitas vezes conflitantes – pois é de natureza da ciência explicar como há o mundo e da religião, o porquê do mundo – as duas invenções humana têm muito que contribuir para a discussão.
Essas duas convergem e se contradizem na dialética histórica, no embate ideológico. Entretanto, cada vez mais a ciência toma evidência na mídia, nas forças de produção e na engrenagem sociopolítica, pois, mais que tudo, como outrora a religião, ela é hoje argumento poderoso para o statu quo. Portanto, a ciência e a religião atuam na ideologia, na linguagem que surge sob a categoria do discurso, na palavra (ideológica por natureza). Além disso, a prática cotidiana de qualquer cientista e de toda instituição religiosa é ideológica, porque todas elas são mediadas pelo discurso, pela comunicação e por objetivos socioeconômicos e políticos.
Método e dogmas
No seu artigo, Marcelo Leite apresenta argumentos comuns entre duas posições, a sua e a da CNBB. Ele diz: ‘Dá para concordar com muita coisa ali (ou ao menos refletir a respeito)’. Óbvio, o tema ‘Vida’, num campo enunciativo jamais poderá ser encerrado sob um ponto de vista religioso ou científico. No máximo, a filosofia, terreno privilegiado da razão humana, pode propor uma discussão interessante, que seja profunda, mas que jamais encerrará o tema. Nem a ciência nem a religião podem finalizar à dialética enunciativa. Talvez alguém pode se calar. Entretanto, o silêncio é perigoso no embate ideológico e nenhum cientista quer se calar, nem os clérigos o devem.
Leite argumenta ainda: ‘A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), patrocinadora da campanha, sucumbe ao vício intelectual de selecionar – entre as raras peças de crítica de ciência – somente aquilo que lhe interessa’. Tudo bem. No processo discursivo é essencial acolher, rejeitar, selecionar e reelaborar os enunciados para o objetivo comunicacional. Leite selecionou o que queria no seu discurso. Além disso, usa dos seus dogmas (do termo grego que significa ato ou decisão de qualquer forma/sistema de pensamento) para argumentar, sucumbiu ao vício intelectual-discursivo, ou seja, escolheu, rejeitou e apresentou enunciados que o interessam para poder convencer no seu texto.
O contra-senso aparece em todos os discursos. Inclusive no de Leite, ao criticar os bispos: ‘Dogmas são universais apenas entre correligionários’. A ciência tem seus dogmas, quem não os segue é rejeitado, marginalizado ideologicamente. Para ser cientista, deve-se seguir os métodos da ciência moderna, seus dogmas.
Começo de discussão
A CNBB, deve-se salientar, usa de argumentos religiosos, filosóficos, jurídicos e científicos – não é algo irracional, ou mesmo um ceticismo religioso que se observa na práxis da Campanha da Fraternidade 2008. No seu texto, Leite cita-se, por exemplo, a bioeticista Elena Lago como fonte da instituição religiosa. Na ciência, mais que em qualquer outro lugar, há consenso entre seus correligionários e contra-sensos. Como todo o discurso, em sua forma viva e contextual, há contradição, embates, dialética de ideologias. No artigo de Leite não é diferente.
Percebe-se que a vontade da CNBB, bem como de muitas pessoas na sociedade, é ampliar a discussão sobre questões hodiernas acerca da ‘Vida’ num campo diversificado filosófico-político-econômico-científico-juridico-religioso-midiático-artístico. É nesse território que age a ideologia que muitas vezes é contra a vida e que sustenta o sistema poderoso que põe em primeiro lugar o lucro, o capital.
A CNBB foi feliz em querer apresentar a pauta sobre a ‘Vida’. Uma discussão que se alarga na história, mas parece que está só começando. Por isso, fico com a máxima de Ludwig Wittgenstein (1889-1951): ‘Sentimos que, mesmo que todas as possíveis perguntas científicas tenham tido respostas, os nossos problemas vitais ainda não foram nem tocados’ [Tratactus Logico-Philosophicus – 6.52].
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Jornalista, escritor e pós-graduando em Meio Ambiente e Desenvolvimento na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), em Itapetinga, BA