Havia decidido, para mim, não escrever um quarto artigo sobre o assassinato de Isabella. Todavia, os desdobramentos do caso me ditaram a quebra da promessa. Quanto mais novas situações se me apresentam, mais me sinto impelido a, sobre o acontecimento, tentar colaborar com reflexões, até para compartilhá-las, numa espécie de desesperada tentativa de firmar uma ‘lógica’ na qual o ser humano, sempre imprevisível (para a criação e destruição), deixa sua ‘assinatura’ indelével.
Os gregos, pela astúcia de Eurípedes, tentando este superar Ésquilo e Sófocles, conceberam a peça trágica Medéia. Na peça grega, Medéia opta por matar os próprios filhos, movida por dilacerador sofrimento, com base na traição de seu amado Jasão. Em outros termos, Eurípedes percebia que a tragédia, legada por seus antecessores, necessitava de uma releitura: a violência do ato humano tinha de ser vinculado à esfera restrita dos humanos. Eurípedes expulsou os deuses da tragédia humana. Foi, sem dúvida, um passo perceptivo tão corajoso quanto inovador.
Muito tempo passou para que outro dramaturgo e poeta retomasse a questão: Shakespeare, no século 16, em Romeu e Julieta, Otelo e Hamlet. Igualmente, ao poeta e dramaturgo inglês não escapou a percepção do quanto o ser humano é capaz de praticar, quando invadido por avassaladora e incontrolável paixão ou fixação.
A recusa à participação
Num corte de muitos séculos, eis que nos vemos, num contexto de classe média, diante de uma narrativa pobre, alimentada por impulsos primários e revestida de ‘preceitos’, ‘conceitos’ e ‘estratégias’, tudo para afrontar a obviedade: duas subjetividades descentradas exterminaram o ‘incômodo’ de uma terceira. Sim, a questão não é a invenção de uma ‘terceira pessoa’ na cena do crime. O problema era a presença de uma ‘terceira pessoa’. O crime solucionou o embaraço de vidas embaralhadas. A mídia, nesse caso, mesmo com excessos deploráveis, passou ao público o horror que está, em algum nível, entre nós. Analisemos, a seguir, alguns aspectos.
Eis que, firmada a necessidade da ‘reconstituição’ (ou ‘reprodução simulada’), irrompeu o frenesi incontido dos ‘vampiros de plantão’, que, na ânsia de tudo ‘informarem’ e ‘filmarem’, acabaram por produzir uma decisão insólita da parte da polícia: a obstrução do espaço aéreo, contestada, primeiramente, pelo Ministério da Aeronáutica e, posteriormente, ratificada pela Justiça.
As partes litigantes negociaram e chegaram a um acordo: o veto inicial de 3km foi reduzido para 1,5 km. Moradores e vizinhos do prédio (local do crime) foram cadastrados, com o intuito de cada morador ter o salvo-conduto para o direito de ir e vir durante as 14 horas de interdição para a ‘simulação’ da qual o patriarca Antonio Nardoni já antecipara que os indiciados dela não iriam participar. A recusa dos únicos indiciados, direito autenticado pela legislação vigente, implica dois níveis de leitura: 1) o princípio constitucional assegura o direito a nenhum acusado produzir provas contra si mesmo; 2) a recusa à participação pode denunciar que ‘quem deve teme’. A imprensa não explorou, como deveria, a recusa de participação dos indiciados.
Juridicamente frágil
Na narrativa que, desde o início, se marca por sofisticação tecnológica e despreparo humano (lembremo-nos de que somente quatro dias após o crime o imóvel foi lacrado), ainda falta mencionar um fato não menos insólito: a polícia abdicou da ‘reprodução simulada’ nos mesmos dia (sábado) e horário (23h36), passando-a para a manhã de domingo, a partir das 9h30, em função de uma festa de criança que uma família do prédio ‘London Residência’ já havia agendado para realizar-se, na noite de sábado, no Play.
Pensemos bem: o fato, pouco explorado pela mídia, é estarrecedor, seja da parte da família, seja da conduta da polícia. Se eu fosse repórter, não resistiria ao impulso jornalístico de tentar entrevistar membros dessa família que, com todo o horror ocorrido nas dependências do prédio, foi incapaz de abrir mão da ‘festa’ para outra data ou local. Também, não desprezaria entrevistar a autoridade policial quanto à plácida aceitação do ‘fato impeditivo’ (a festa). Bem, a rigor, não sei se, na atual conjuntura, algum repórter teria autonomia para lançar-se a tais investidas. Talvez, em tentando, perdesse o emprego (ou, assim, imaginasse).
A ‘narrativa do drama urbano’ que ainda não definiu o foco: 1) a dimensão do trágico; 2) a ‘estética da ironia’, produziu uma ‘construção anômala’, ou seja, o que seria ‘reconstituição’, passou a ser ‘simulação’, já que os únicos indiciados (pai e madrasta) se recusaram, sob orientação dos advogados de defesa, além da sábia orientação do ‘patriarca’, à participação. Como é sabido, sem a presença dos indiciados (não são réus confessos) e, ainda mais, em horário e dia alterados, ‘simulação’ fica, juridicamente, frágil e aberta para, adiante, a defesa poder, tecnicamente, tentar invalidar.
Desencanto, descrença e melancolia
Os jornais, no sábado, já exibiam manchetes a respeito: ‘Criminalistas contestam hora da simulação da morte de Isabella’ (Folha de S.Paulo, 26/4/08). A questão, portanto, é: a polícia desconheceria a possibilidade futura da invalidação? Claro que não. Como se explica, pois, a decisão da polícia?
Outro fator a colaborar para a tensão entre ‘elucidação’ e ‘opacidade’ diz respeito à disparidade das informações. Explico: na edição do telejornal da Band (26/4/08), foi afirmado que resíduos de vômito de Isabella, reação orgânica à esganadura, na malha do pai, representavam um dado inquirido pela polícia, sem a devida ratificação da perícia. Minutos após, o telejornal da Globo não mencionava tal discrepância. Como fica o receptor que assistiu a ambos?
Em síntese, aos ardorosos defensores dos ‘direitos constitucionalistas’, consagrados na reformulação constitucional de 1988, peço revisão urgente: aponto que há profunda distinção entre processualística criminal entre ‘delitos ideológicos’ (‘crimes de pensamento’ – fantasma da ditadura) e ‘atos contra o direito à vida’ (‘crimes praticados por seres destituídos de formação ético-afetiva’).
Aos mesmos defensores ardorosos dos tais ‘direitos constitucionais,’ ainda perguntaria: como alguém (ainda mais, se pai biológico) que, diante do caixão, jurou que tudo faria para descobrir o ‘monstro’ que matou a filha, abdicaria de se fazer presente na ‘reconstituição/ simulação’? É simples: se eu (pai) nada tivesse a ocultar, sob pena de me incriminar, tudo faria para colaborar para a elucidação. Sinto muito: nesse caso, por mais que tentem, nada encontrarão, além do desencanto de Ésquilo, da descrença de Sófocles e da desistência de Eurípedes… sem mencionar a melancolia de Shakespeare.
Quando a serpente pôs o ovo?
As avaliações até aqui sinalizadas, o que tentam configurar? O jornalista Zuenir Ventura, por caminhos outros, respondeu a essa questão, ao publicar, 40 anos após o ‘épico-trágico’ ano de 1968, o livro 1968: o que fizemos de nós? (Ed. Planeta do Brasil, 2008). Usando uma metáfora com a qual o cineasta sueco Ingmar Bergman (falecido em julho de 2007) dirigiu o filme O ovo da serpente (1977), caberia a seguinte indagação: em que momento da vida brasileira uma ‘serpente’ pôs um ovo degenerado, capaz de alterar o DNA ético-cultural de gerações? Não, por favor, não se apresentem vozes contra os dois mandatos de Lula. Não, por obséquio, não vociferem contra os dois mandatos de FHC. Historicamente, a ‘serpente’ já havia, bem antes, chocado o ‘ovo maldito’. Quando?
1.
Quando a maior parte da sociedade brasileira ‘fingiu’ ignorar os horrores contra ‘corpos-consciência’ daqueles que, até por métodos discutíveis (e muitos eram tão jovens), tinham a intuição do mal devastador;2.
quando amplos segmentos, líderes de opinião, firmaram o acordo em favor de uma anistia que sepultava responsabilidades por atrocidades praticadas;3.
quando a maioria da sociedade brasileira aceitou, placidamente, no dia seguinte, a decisão do Congresso Nacional, ao rejeitar a ‘emenda Dante de Oliveira’;4.
quando a maior parte dos eleitores optou por Collor;5.
quando os setores majoritários da população se conformaram ante os descaminhos de uma CPI que poderia trazer, à tona, a rede de corrompidos e de corruptores.Daí em diante, somando-se os cinco episódios, não há mais como responsabilizar quem quer que seja. O comportamento dos Nardoni, a família da ‘festa’, a cobertura da mídia, a submissão da polícia, o consumo dos telespectadores, a negligência da perícia (apesar do requintado aparato técnico), tudo se transforma numa massa gelatinosa, gosmenta, na qual o ponto de convergência é o esgarçamento dos valores éticos. Quantos, pois, contribuem, para que outros crimes, envolvendo um ser indefeso, sejam pauta de futuros noticiários?
Quem sabe, ainda tenhamos uma oportunidade de um novo redirecionamento, caso entendamos a diferença entre ‘violência’ e ‘violação’. Um certo escritor, Kafka, nas primeiras décadas do século passado, escreveu curto conto: Diante da lei. O leitor, menos afoito em contestar, poderá, via Google, acessar a pequena narrativa daquele jovem escritor e, talvez, ali, encontrar respostas. Bem, não se despreze, também, o filme O ovo da serpente.
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Ensaísta, articulista, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor titular de Linguagem Impressa e Audiovisual da Facha (Rio de Janeiro)