Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A busca de Catarina

O jornalismo ainda pode ter momentos sublimes, e nem precisa exibir um texto literário como os que eram produzidos por Marcos Faerman no Jornal da Tarde – ou outros profissionais que desenvolveram o gosto de contar histórias: basta olhar de vez em quando para dentro das instituições e enxergar o ser humano que deveria ser o centro das notícias.

Foi o que fez a Folha de S. Paulo no sábado (9/3), ao acompanhar a última ocupante do cortiço de Vila Itororó, em São Paulo, em sua busca por uma nova moradia. Podia ser o relato burocrático de mais uma ação de despejo, mas os autores conseguiram produzir mais do que isso.

Vila Itororó, um conjunto de 37 casas considerado de alto valor arquitetônico, vai ser transformado em centro cultural. As 104 famílias que ocupavam o lugar começaram a ser removidas em 2011. Maria Helena Katarinhuk foi a última a sair. Os repórteres da Folha acompanharam sua viagem em busca de um barraco numa favela, mas ela não conseguiu achar o novo endereço; depois testemunharam seu alojamento num albergue, de onde ela saiu para não mais ser vista. “Desde então, para o governo, não mora mais em cortiço, não mora em albergue, nem na rua. Não busca por mais nada”, conclui a reportagem.

O texto ocupa uma página inteira e descreve como o Estado “resolve” os problemas sociais. Catarina, como é chamada, uma mulher solitária de 58 anos, é o motivo da reportagem. O déficit habitacional, a desorganização urbana, a falta de planejamento, a desumanidade dos processos institucionais, são o contexto em que a história acontece.

Trata-se de um drama comum, que se repete diariamente, talvez centenas de vezes, numa cidade como São Paulo. Mas a imprensa costuma olhar apenas para as instituições, os números, e raramente enxerga os verdadeiros protagonistas.

A história contada pela Folha não tem um final, porque Catarina virou um número, mas o drama continua para ela e milhares de outros moradores de rua ou famílias que se abrigam em moradias precárias. São os cidadãos invisíveis. Descrita assim, não será capaz de mudar a realidade, mas haverá de lembrar alguns leitores de que o noticiário frio das estatísticas é apenas uma cortina a ocultar os dramas humanos.

Tudo a ver

Há outras histórias nos jornais, como a do menino que atropelou outro menino, arrancando-lhe um braço. Depois atirou o braço num córrego sujo. Estava alcoolizado.

Um grande número de motoristas tem sido parado nas barreiras policiais, em torno dos bairros boêmios e nas estradas; aumentou em mais de 100% o total de pessoas presas por dirigir sob o efeito de álcool; muitos relatam arbitrariedades de agentes públicos.

Os jornais descrevem o trágico acidente, nas edições de segunda-feira (11/3), e produzem sentimentos dúbios no leitor. Tragicamente, o psicólogo de 22 anos não foi abordado antes de atingir o ciclista de 21 anos que se dirigia ao trabalho de lavador de vidraças, na madrugada de domingo (10). Seus advogados tratam de amenizar as consequências da irresponsabilidade do motorista e a vítima diz que ainda sente o braço que não está mais, como na música de Chico Buarque.

Talvez essa notícia seja apenas uma metáfora da humanidade que a cidade grande perdeu, mas da qual ainda se ressente, como a fisgada no membro amputado. O jornalismo às vezes tem essa capacidade, de abrir um pouco a cortina da indiferença e deixar o leitor olhar para dentro da sociedade. Mas são momentos raros. No mais das vezes, a imprensa está empenhada em vender sua própria visão de mundo, fingindo que não tem nada a ver com o estado do mundo e das nossas cidades.

Décadas de governos inconsequentes, entregues ao jogo da especulação imobiliária, têm sua contrapartida na parceria lucrativa dos jornais com os anúncios de novos e incessantes lançamentos. Projetos urbanos que privilegiam a solução individual contra o transporte coletivo produzem cadernos recheados de novos modelos de automóveis.

A indústria de bebidas se insinua na vida dos adolescentes com seus delírios eróticos – e isso também produz receita publicitária.

A imprensa tem muito a ver com tudo isso.

Deve existir um ponto de equilíbrio entre o interesse econômico de uns e os interesses difusos da comunidade humana. A imprensa poderia se colocar nesse espaço, e fazer uma opção preferencial pela sociedade.