Friday, 27 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

A cineasta ninja e a banalidade do mal

Gostaria de propor uma investigação jornalística, filosófica e cinematográfica sobre a crescente onda de protestos nas ruas das principais capitais brasileiras.

Você assistiu a este vídeo que mostra uma jovem sendo brutalmente agredida por policiais militares no Rio de Janeiro na quinta-feira (29/8)?

Nas imagens, Rani Messias Castro, de 19 anos, estudante de cinema e que participava dos protestos com sua câmera de vídeo, aparece sendo derrubada ao chão e depois recebendo golpes de cassetete e chutes dos policiais. São cenas fortes e chocantes não recomendadas para pessoas sensíveis ou felizes.

A nossa investigação prossegue.

Você conhece a filósofa alemã Hannah Arendt? Assistiu ao filme sobre a sua vida, da diretora Margarethe Von Trotta, exibido recentemente nos cinemas brasileiros? Veja aqui o trailer. O filme mostra como Arendt cobriu o julgamento do líder nazista Adolf Eichmann para a revista norte-americana The New Yorker. Ela escreveu sua avaliação sobre o caso e pagou caro ao afirmar nem todos que participaram dos crimes de guerra eram verdadeiros monstros. “Ele era um arrivista medíocre, uma nulidade pronta a obedecer a qualquer voz imperativa, incapaz de refletir sobre seus atos ou de fugir aos clichês burocráticos (o que não o isenta de responsabilidade por suas atitudes)”, afirmava Arendt.

A sociedade se voltou contra ela e a prestigiosa New Yorker, e as críticas foram tão fortes que até mesmo seus amigos mais próximos se assustaram e muitos se afastaram definitivamente de Arendt.

Trata-se de um filme fundamental para quem pensa e não aceita as versões mais comuns dos fatos ou as condenações automáticas.

Mas o que as agressões sofridas pela jovem cineasta carioca têm a ver com a vida da grande filósofa Hannah Arendt? Respondo rápido: tudo. Ambas foram vítimas de um conceito cruel, inovador e infelizmente, ainda atual criado pela filósofa alemã: a “banalidade do mal”.

Tropa de elite

A investigação vai adiante.

Será que os policiais que “violentaram” de forma tão brutal a jovem cineasta carioca são “monstros”, bestas do apocalipse, seres anormais que cometeram excessos e truculência? Eles devem ser punidos exemplarmente, como exige uma grande parte da sociedade brasileira? Ou seriam eles meros profissionais de segurança que não pensam ou refletem sobre suas vidas e seus atos, mas cumprem tarefas sociais autorizadas e legitimadas pelas autoridades públicas e a nossa sociedade?

Policial militar no Rio de Janeiro, assim como em todo o país, é preparado para ser eficiente. O problema é definir “eficiência policial”. A sociedade exige direito à informação, liberdade de expressão, mas também requer segurança. Estamos caminhando em terreno nebuloso entre o jornalismo, a filosofia e o cinema.

A investigação prossegue.

Tropa de Elite, filme brasileiro de enorme sucesso tanto de público quanto de crítica, tem como tema principal o treinamento do Batalhão de Operações Especiais, o famoso Bope da PM do Rio de Janeiro. A cena principal, o momento de êxtase ou catarse coletiva do filme, é a tortura brutal de um jovem favelado, um “ser humano”. Muitas pessoas chegaram a aplaudir essa cena do filme. O personagem “violentado” pelos policiais no filme não era uma jovem cineasta, mas ainda assim era um “ser humano” e, como todos nós, merece o mínimo de dignidade e segurança.

Estamos frente a um impasse de conceitos, imagens e atitudes. Aplaudimos Tropa de Elite e condenamos os policiais truculentos que agem de forma violenta diariamente nas ruas do Brasil. Adoramos a ficção e o cinema e execramos a realidade não editada transmitida ao vivo pela Mídia Ninja.

Jornalismo-ação

A Polícia Militar em qualquer parte do Brasil foi preparada para agir de forma violenta em comunidades específicas como as favelas do Rio de Janeiro, para prender bandidos ou traficantes que também devem ser considerados “seres humanos”. De vez em quando, alguns deles desaparecem e agora são chamados de “Amarildos”.

A verdade é que a Polícia Militar brasileira jamais foi qualificada para lidar com manifestações populares e protestos de ruas. Não estamos preparados para enfrentar a realidade e suas mudanças mais urgentes. Vivemos em uma espécie de ficção ou “cinema” de uma realidade que insiste em nos surpreender e incomodar.

A polícia, assim com a sociedade e o jornalismo brasileiros, não estão preparados para lidar com manifestações, protestos e “seres humanos”. As imagens da jovem carioca sendo brutalmente espancada nos chocam porque elas remetem à facilidade ou “banalidade” com que policiais ou pessoas comuns cometem “maldades”.

Mas nem todos permanecem indiferentes ao mundo. Quando um jovem jornalista portando sua câmera conectada à internet decide nos mostrar a violência policial sem cortes e edições, quando ele grita palavrões ao vivo pela rede, ficamos chocados. Mas não fazemos nada. Talvez valesse a pena pensar que o igualmente jovem jornalista ninja que mostrou e gritou contra a violência cometida pelos policiais contra a sua colega cineasta tenha com isso atraído para si as agressões. Ele talvez tenha evitado a morte de mais um ser humano ou “Amarildo”.

Talvez tenha sido exatamente essa “ação” do jornalista que evitou o mal ainda maior. Chamam isso de Jornalismo-Ação. Prefiro dizer que é Jornalismo.

Pensar e agir

Agora vamos tentar pensar de forma alternativa. Para muitos, punir os policiais parece ser a solução definitiva de todos os problemas. Mas o que aconteceria se todos os policiais brasileiros resolverem fazer exatamente como tantos jornalistas de grandes empresas de comunicação e se retirarem das ruas? E se todos os policiais brasileiros – diante da violência dos protestos de rua, da reação negativa da sociedade e das punições exemplares a colegas – resolverem entrar em greve? O que aconteceria em um mundo sem jornalistas, policiais e filósofos?

Hannah Arendt pagou um alto preço declarar ao mundo que Adolf Eichmann, o líder nazista sequestrado, julgado e enforcado em Israel, não era um “monstro”. Em certas circunstâncias históricas ou eventos cotidianos ao acaso, qualquer pessoa que não pense, não reflita sobre sua vida e a sociedade em que vive pode cometer grandes maldades. Daí a importância fundamental do jornalismo e da filosofia. Eles nos ajudam a pensar. E pensar não é somente aquela vozinha dentro da cabeça que insiste em nos atormentar. Pensar de verdade significa tomar decisões que implicam ações.

A “banalidade do mal” acontece sempre quando deixamos de pensar e agir. Todo o jornalista ou policial que abre mão de pensar corre o risco de se tornar um “monstro”.

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Antonio Brasil é jornalista, professor da Universidade Federal de Santa Catarina, pesquisador do Grupo Interinstitucional de Pesquisas em Telejornalismo (GIPTELE) e autor do livro Telejornalismo Imaginário (Editora Insular)