‘Ela conseguiu. Poucas vezes se viu tanta unanimidade. Jornais, rádio, televisão, ao informar que perdemos Ruth Cardoso, destacavam, em primeiro lugar, sua atividade profissional: `Ruth Cardoso, antropóloga´. Em seguida vinha a informação de que era mulher do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. A identificação era relativa à sua carreira, aos livros que escreveu, às pesquisas que fez, a seu trabalho como professora. E tudo convivia plenamente com o carinho pelos filhos, os netos e a vida como companheira constante do marido.’ (O Estado de S.Paulo, 29/06/2008)
O artigo de Eva Blay (cientista social, militante feminista, professora da USP e ex-senadora) dado no Estadão foi absolutamente preciso ao analisar a cobertura da imprensa sobre a morte de Ruth Cardoso.
Em meio a dezenas de artigos – até editoriais – sobre o papel da antropóloga que deu nova dimensão ao cargo de primeira-dama, o texto de Eva Blay merece destaque não apenas por fazer o comentário da mídia, mas por ser uma voz feminina falando da mulher que foi um dos mais belos exemplos de discrição e competência neste país, especialmente entre as que ocuparam o posto de primeira-dama:
‘Competente, discreta e avessa à visibilidade pública, não se deixou vencer pelo poder nem pela sina anti-republicana de que esposas de presidentes cuidam da caridade estatal. Compreendeu o espaço de criação política que se abria com a posse de Fernando Henrique e o desafio que lhe tocava quanto a quebrar rotinas e inovar. Ruth criou o Comunidade Solidária para substituir a prática do assistencialismo estatal por uma prática moderna de distribuição de conhecimentos e valorização da cultura e do capital social da própria população pobre.’
Um trabalho diferenciado
A leitura do artigo de Eva Blay torna-se mais interessante ainda no momento em que os jornais começam a relevar o perfil das candidatas a primeira-dama nos Estados Unidos, com direito a escândalos familiares e comentários sobre roupas e estilo pessoal.
Do lado republicano, aparece Cindy, ‘uma belíssima milionária’. A belíssima milionária (18 anos mais moça que o candidato John McCain) já mereceu perfil na sofisticada revista Baazar, falando de sua origem, da fortuna familiar (ela é herdeira da maior distribuidora de cerveja dos EUA) e até de vícios superados (foi dependente de remédios, chegando até a cometer atos ilegais para consegui-los).
Mas, para a imprensa brasileira, o significado que a loira representante da elite norte-americana terá na Casa Branca – no caso do marido ser eleito – tem pouco interesse. Interessa mais a figura da ex-mulher, protagonista de uma trágica história pessoal: vítima de um acidente de carro, deformada fisicamente, acabou abandonada pelo marido e trocada pela jovem rica que impulsionou a campanha política do ex-piloto da Marinha.
Do lado democrata surge Michelle Obama, a jovem negra nascida num bairro pobre de Chicago, advogada de sucesso, formada por duas importantes universidades norte-americanas. Para a imprensa brasileira, Michelle é notícia pelo porte e pelas roupas que veste. Em Veja (edição nº 2067) é mostrada em fotos, comparando-a com Jacqueline Kennedy e Sara Jéssica Parker. ‘Não é coincidência – diz a revista – ‘que as roupas de Michelle tenham um arzinho de Sarah Jéssica Parker, além das evidentes referências a Jacqueline Kennedy, ícone supremo de elegância. Michelle tem um tremendo senso de estilo, mas evidentemente recebe ajuda profissional para se vestir como o que almeja ser: primeira-dama.’
A leitura dessas matérias – as sobre Ruth Cardoso e as mulheres dos candidatos norte-americanos – nos fazem concluir que as mulheres precisam ser muito especiais para merecer um tratamento diferenciado por parte da imprensa. Enquanto foi primeira-dama (denominação que ela abominava), Ruth Cardoso deixou a mídia numa posição difícil: fazia um trabalho diferenciado e não dava margem a comentários sobre suas roupas, maquilagem, fofocas e outros detalhes sobre mulheres que parecem ser o tema predileto da imprensa quando o assunto feminino está em pauta.
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Jornalista