Há um desnível sensível entre a pauta da imprensa brasileira e latino-americana e a abordagem das demais instituições que influenciam ou informam os poderes e a opinião pública. Com clara desvantagem para a imprensa. Basta comparecer a qualquer evento promovido por universidades, institutos de estudos, instituições multilaterais e até organizações não-governamentais para se perceber como a imprensa se arrasta na retaguarda.
Um exemplo? As questões da qualidade de vida na maior região metropolitana do Brasil são abordadas com mais profusão de dados e com mais profundidade no movimento relativamente recente intitulado ‘Nossa São Paulo – uma Outra Cidade’ do que nos cadernos correspondentes dos nossos maiores jornais e nos programas jornalísticos do rádio e da televisão.
Da mesma forma, o tema da responsabilidade social apresenta uma dianteira inalcançável em foros como o Instituto Ethos, em relação aos esforços da mídia. Se levarmos em conta os estudos do Instituto Latinobarómetro, do Chile, os debates do Instituto de Estudos Avançados da USP e outras entidades correlatas, como o Núcleo de Estudos do Futuro da PUC-SP, a imprensa parece estacionada nas origens da Revolução Industrial.
Diálogo de surdos
Esse desnível faz com que sejam omitidas da chamada opinião pública questões muito importantes do cotidiano das cidades, da economia e da política. A começar do cotidiano, ficam os leitores distanciados das raízes de problemas como a violência, a corrupção policial, as deficiências dos serviços públicos. Da mesma forma, tornam-se reféns do viés da mídia no noticiário político e da desatualização em relação aos novos paradigmas de análise da economia e dos negócios.
Essa é a causa provável do fenômeno que se percebe nas áreas de comentários dos blogs políticos agregados a jornais e revistas, e até neste Observatório: a maioria dos comentaristas demonstra dificuldade para avançar na análise dos temas apresentados, e o que se vê, salvo exceções pontuais, é a repetição do obsoleto confronto discursivo esquerda versus direita.
Para este Observatório, trata-se de um desafio permanente o de estimular os participantes a pensar adiante da mídia, porque o objetivo da observação é justamente contribuir para a melhoria da qualidade do jornalismo praticado no país. Mas a mídia não ajuda: quando o leitor fica preso à agenda proposta pela imprensa, tem-se a impressão de que estamos envolvidos num diálogo de surdos que ignoram a linguagem de sinais.
Capitalismos menos capitalistas
Veja-se, por exemplo, os debates sobre as relações entre o Brasil e a Venezuela, ou a repercussão do ‘cala-boca’ do rei da Espanha ao presidente Hugo Chávez. Embora o presidente Lula tenha levantado a questão da desigualdade de condições entre o monarca – que não depende de votos para se manter no poder – e um governante que precisa se submeter a eleições, a imprensa se desviou da questão e se ateve ao factóide em si.
Esse era um bom momento para pensar, por exemplo, na racionalidade da persistência das monarquias no mundo contemporâneo, com o anacronismo do conceito de direito divino ao poder. Na falta de abordagens menos convencionais, a opinião pública ficou atrelada ao que indica o viés ideológico de cada um, sem que se oferecesse a oportunidade para uma reflexão mais profunda sobre as relações entre a Espanha e suas antigas colônias, por exemplo.
Ora, empresas ibéricas fazem a festa na América do Sul, cumprindo o antigo papel do Estado de prover o desenvolvimento, beneficiam-se da privatização de serviços que os latino-americanos não conseguem financiar e acumulam lucros imensos. Trata-se do velho jogo do capitalismo, mas a imprensa passa por cima de certos detalhes, como o alto grau de envolvimento dos governos de Portugal e Espanha na constituição das multinacionais que atuam na América Latina. Esse detalhe, por si, mereceria algumas linhas de diferenciação entre capitalistas e capitalistas.
Quando a imprensa acusa os presidentes Hugo Chávez e Evo Morales de conduzirem a Venezuela e a Bolívia para fora dos padrões da economia capitalista, poderiam lembrar que as novas potências ibéricas financiaram suas multinacionais com recursos do Estado a partir da década de 1970 – e ninguém nunca publicou que o capitalismo espanhol ou português é menos capitalista.
Visão de mundo estúpida
Da mesma forma, nenhum jornal ou revista jamais se dignou a destrinchar o sistema financeiro da Suíça – nação tradicionalmente postada como paradigma da neutralidade e da civilidade – quando se sabe que o crime organizado e a corrupção têm em grandes bancos daquele país abrigo discreto para o dinheiro sujo. O escândalo das fraudes e evasão de divisas revelado recentemente pelas operações que a Polícia Federal batizou de Kaspar I e Kaspar II desapareceu do noticiário sem que a imprensa prestasse aos leitores o serviço de esclarecer esse lado perverso do sistema financeiro internacional.
Em outros temas, como a violência urbana, também sobram factóides, registros espetaculares de ações da polícia. O contraponto é a declaração de um representante da ONU a respeito de violações dos direitos de cidadãos durante os confrontos em favelas do Rio. Entre um e outro aspectos desse noticiário adormecem sutilezas que a imprensa regulamente omite, com raras exceções. Uma dessas exceções, que de rara merece destaque, é a série de reportagens do Globo sobre a tirania que traficantes, milícias e policiais corruptos exercem nos morros do Rio, publicada em agosto e setembro.
Ao permanecer na superfície dos fatos, a imprensa deixa de estimular a inteligência do leitor e sua busca por explicações mais satisfatórias para certos acontecimentos. Ficamos, assim, presos ao velho e batido viés que reproduz um confronto ideológico sem sentido na complexidade do mundo contemporâneo.
Se, como afirma o peruano Alvaro Vargas Llosa, persiste na América Latina um pensamento esquerdista que ele chama de ‘perfeitamente idiota’, a contrapartida é a permanência de uma visão de mundo conservadora, justificada pela imprensa, que podemos chamar, sem medo de errar, de absolutamente estúpida.
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Jornalista