A mídia, seja na versão impressa, seja, ainda mais, na modalidade eletrônica, muito realça a necessidade de preservação da saúde do corpo. Todavia, por alguma razão não muito clara, igual ênfase, a mídia não confere à necessidade do cuidado quanto à ‘saúde mental’. Será esta apenas uma observação desprovida de fundamento, ou, por outra, será uma indagação procedente, extraída da constatação diária?
A loucura pode ser produzida?
Por razões não menos obscuras, uma publicação de 2003, de Ciro Marcondes Filho, mereceu tímida referência nos veículos de comunicação. Refiro-me ao livro A produção social da loucura, obra editada pela editora Paulus (SP).
Na obra mencionada, o autor, com inúmeras outras publicações, exibe um quadro societário no qual, dado o modelo cultural predominante, se instalam condições propícias para a proliferação de comportamentos psíquicos ‘desajustados’. O tema em si não me é completamente novo, considerando que, em tempos anteriores à publicação, já havia pontuações críticas a respeito. Modestamente, em livro publicado em 1987 (Crise e escritura, RJ, Forense Universitária), na página 134, aludia à formação do ‘império da esquizofrenia’, ao abordar o verbete ‘existência insular’.
Alain Badiou, no livro Manifesto pela filosofia (RJ, Ed. Aoutra, 1991), atentara para o sintoma da emergência da ‘subjetividade descentrada’, fruto de um contexto cultural centrado na multiplicidade de ofertas de conteúdos, gerada pelas recentes tecnologias da informação, o que se confirma na sentença: ‘(…) o sujeito é descentrado ou vazio /…/’ (p. 16). O fato também não escapou à reflexão de Jean Baudrillard (‘estado de aturdimento’), na obra As estratégias fratais (RJ, Rocco, 1996). Tampouco, a questão escapou do crivo crítico de Paul Virilio, ao tratar do fenômeno cultural da ‘dromologia’, de Edgar Morin, de Umberto Eco e de Contardo Calligaris, estes, em entrevistas recentes à Folha de S. Paulo, quando tematizaram sobre os malefícios na crença ‘infantil’ do ‘mito da felicidade’. É, portanto, no reconhecimento de um sintoma que, progressivamente, vem gerando noticiários sobre casos escabrosos que reporto à publicação anteriormente mencionada. Examinem-se, pois, cinco afirmações de Ciro Marcondes Filho, constantes na obra já indicada:
‘À loucura, ao ritmo frenético da produção, corresponde um novo homem, absolutamente dissociado, racional, isolado do ambiente social, frio, com uma tenacidade cega e preocupante e que busca permanentemente recompor o contato social, mas por meios ilusórios ou literalmente delirantes (máquinas, vídeos, jogos eletrônicos, consumo, linguagem dissociada etc.)’. (p. 11)
‘O sistema de produção da loucura, reforçando esses estados patológicos latentes nas pessoas, torna-as aptas para entrar na máquina e operá-la, participando do teatro do mundo. O preço do ingresso é a saúde mental‘. [grifo nosso]. (p. 13)
‘(…), pode-se supor que hoje, tendo a sociedade global assumido a função de educar em lugar dos pais, passa então a gerar as paredes do lar e instala-se na sociedade maior, produzindo nosso novo homem da era pós-industrial’. (p. 14).
Adiante, o autor, ao abordar o tema da ‘felicidade’, recorrendo a Freud, sentencia que:
‘(…) o que os homens buscam na vida é a, também em Freud, a felicidade. No entanto, afirma ele [Freud], a felicidade foi descartada do plano da Criação; nos momentos em que é sentida não passa de um episodisches Phänomenen, prazer esse que é de um contraste: só existe pela existência (anterior) de seu oposto, o desprazer.’ (pp. 231-232).
No prosseguimento da reflexão, Ciro Marcondes Filho arremata a seguinte afirmação:
Parece-nos que o acoplamento entre as fantasias imaginárias e o real é o que constitui felicidade. Mas, dado que o desejo é uma sensação em permanente deslocamento, a sensação de ser feliz, é, por um lado, apenas o ‘momento de toque’ das fantasias com o real, que a partir daí o desejo já se deslocou e transferiu a felicidade para outro objeto. /…/ (p. 232)
Dedução simples
As cinco citações trazem, para o presente enfoque, a seguinte questão: terá a mídia, dado o formato dominante (impresso e, principalmente, audiovisual), alguma responsabilidade na ‘produção social da loucura’? Aferições preliminares dão conta de que a mídia, efetivamente, colabora, em grau progressivo, para a proliferação de um estado psíquico coletivo alterado.
O modelo centrado na diversidade temática, somado a uma hierarquização estética do que acentua o ‘exótico’ e ‘sensacionalista’, em detrimento do que é valoroso e ético, não pode querer outro efeito senão o do descentramento da subjetividade. Em outros termos, será que a mídia, ao propagar a ‘saúde do corpo’, além de atender as demandas dos inúmeros anunciantes de plano de saúde, cujo propósito consiste na maximização de receitas e minimização de custos, não auxilia na deformação de estados psíquicos da qual, a posteriori, também extrai alta lucratividade, em função de matérias que tanto rendem pautas quanto vendem exemplares e audiências?
Como está, a dedução é simples: a mídia fatura com a ‘saúde do corpo’ e com a ‘doença mental’. Que respondam os responsáveis pela fórmula.
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Ensaísta, articulista, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor titular de Linguagem Impressa e Audiovisual da Facha (Rio de Janeiro)