Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Afinal, ditador, líder ou presidente?

Para a grande mídia brasileira, como os jornais paulistanos Folha de S. Paulo e Estadão, Fidel Castro de Cuba, Pinochet do Chile, Milosevic da Iugoslávia, Saddam Hussein do Iraque, Kim Jong-Il da Coréia do Norte, Pervez Musharraf do Paquistão e alguns outros são ditadores. No entanto, essa mesma mídia considera presidentes os generais que ocuparam o poder no Brasil, durante os 21 anos de ditadura militar.

Segundo a enciclopédia Wikipedia,

‘As ditaduras são normalmente impostas por movimentos de poder, seja militares ou revolucionários, que detêm poder de fogo e o usam contra o sistema estrutural, anteriormente utilizado por uma sociedade; estas se impõem em golpes de estado. Geralmente, a imposição do movimento que resulta neste regime de exceção é em função da defesa de interesses minoritários, econômico-financeiros, étnicos, ideológicos e outros. Nem sempre as ditaduras se dão por golpe militar, podem surgir por golpe de estado político; exemplo de movimento desta ordem se deu quando ocorreu a ditadura imposta por Adolf Hitler na Alemanha nazista e a ditadura fascista de Mussolini, na Itália. Foi quando o golpe se desencadeou a partir das próprias estruturas de governo; foram aproveitadas as debilidades de um sistema falho e entraram partidos cujas ideologias não eram democráticas. Portanto, uma vez instalados no poder, lá permaneceram e se impuseram à vontade popular, suprimindo os demais partidos e aposições, portanto, a democracia.’

Por esta ótica, fica difícil entender esta diferenciação. Será que o ditador Emílio Garrastazu Médici, general ‘eleito’ entre seus pares militares com apoio de políticos e empresários ligados à ditadura militar, para governar o Brasil de 1970 a 1975, era ‘mais democrático’ do que um Augusto Pinochet, um Jorge Rafael Videla, militar argentino que governou o país de 1976 a 1981? Estes três personagens, cada um em seu país, lideraram as piores atrocidades que um ditador pode fazer contra os que não concordavam com o regime ditatorial.

Fossem guerrilheiros, fossem apenas oposição no âmbito político-institucional, o Brasil de Médici, o Chile de Pinochet e a Argentina de Videla violaram tudo o que se considera direitos humanos, liberdade de pensamento, opinião, artística, imprensa, reunião, partidária etc. Prendiam, torturavam e matavam qualquer oposicionista. Instalaram em seus países um clima policialesco, de medo e horror com remanso até os dias atuais. E, mesmo assim, a grande mídia trata esses ditadores de presidentes. Igualar, na figura do mais alto cargo do país, os atuais presidentes eleitos aos ditadores é conferir status histórico semelhante entre presidentes eleitos pelo voto popular e ditadores que tomaram o poder em golpes militares. Além da injustiça histórica, é também uma sutil manipulação da informação. Mentira se transformando em verdade.

Nenhuma investigação

O jornal Folha de S. Paulo, no seu manual de redação, propõe o seguinte:

Ditador, líder e dirigente – A Folha usa o termo ‘ditador’ para designar o dirigente principal de um regime sem liberdades democráticas e com poderes concentrados nas mãos de um único líder, diferentemente, por exemplo, de uma junta militar ou de outro sistema de direção colegiada. Recomenda-se a palavra ‘ditador’ na primeira menção no texto, alternando depois, para evitar repetições, com o cargo formal. Os ditadores Fidel Castro e Saddam Hussein, por exemplo, são presidentes cubano e iraquiano. Os ex-ditadores Augusto Pinochet (Chile) e Alfredo Stroessner (Paraguai) ocuparam também a Presidência de seus países. O ditador líbio Muammar Gaddafi não ocupa nenhum cargo formal. Para os casos de regimes ditatoriais não-pessoais, como os casos atuais da China e do Vietnã, usa-se o termo dirigente ou líder na primeira menção, buscando acrescentar um adjetivo que descreve o sistema em questão. Exemplo: o dirigente comunista Jiang Zemin. Para evitar a repetição e o empobrecimento do texto, recomenda-se alternar o termo ‘líder’ ou ‘dirigente’ com o cargo formal. Novamente o exemplo Jiang Zemin: o presidente chinês, Jiang Zemin. Nesse caso, Jiang também pode ser descrito como secretário-geral do PC (ele acumula os dois cargos). Recomenda-se checar os casos não mencionados e manter atualizadas as descrições acima’ (Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/folha/circulo/manual_adendos.htm)

Então, em função de um formalismo da redação, confunde-se tudo. Ditadores podem se transformar em presidentes, líderes, secretário-geral etc. Depende mais do estilo de quem escreve o texto e menos da realidade histórica que determinou e determina a existência de um ditador. Além, é claro, da orientação política, ideológica e partidária do veículo de imprensa que determina o que se fazer e como fazer.

Um caso exemplar desta situação foi a morte do ex-presidente da Iugoslávia Slobodan Milosevic, que estava sendo julgado por crimes contra a humanidade no Tribunal Internacional de Haya, na Holanda, sob o comando da Otan. Chamado por quase toda a mídia internacional de o ‘carniceiro dos Bálcãs’, Milosevic não era nada disso. Durante a guerra contra a Iugoslávia, durante mais de 10 anos, até 2001, a grande mídia internacional articulada com os governos americano e de alguns países europeus, criaram a versão de que o ex-presidente da Iugoslávia estava liderando um massacre e uma limpeza étnica contra albaneses e muçulmanos. A Iugoslávia foi bombardeada por forças militares sob o comando da Otan, forçando Milosevic a aceitar os termos de rendição que interessavam aos EUA e seus aliados europeus. O que eles realmente queriam era liberar o trajeto dos oleodutos (pipelines) oriundos do Cáucaso, trazendo petróleo e gás, além de destruir e privatizar toda a estrutura industrial que até então estava sob controle estatal na Iugoslávia. Era o tal do neoliberalismo em ação, no âmbito militar, para implantar nos Bálcãs uma política-econômica de interesse dos países industrializados.

Ato contínuo, Milosevic foi considerado o inimigo número um da civilização ocidental, igualado a Hitler. Maciça campanha foi construída na mídia mundial para justificar sua prisão e seu julgamento. Mas, o mais importante nesta história, é que não houve praticamente nenhum trabalho de investigação jornalística na grande mídia para checar se tudo isso era ou não verdade, se Milosevic era um ditador cruel e sanguinário ou não. Aceitou-se de mão beijada os informes e os releases oficiais dos governos da Otan e a versão aceita e divulgada foi a de que ele era um mostro e devia ser penalizado.

Propaganda, não jornalismo

No Brasil, praticamente toda imprensa repetiu a mesma toada. Ditador e sanguinário Milosevic, tem sido a tônica em todos veículos da grande mídia. E pouca coisa mais, além das informações oriundas das agências internacionais de notícias, tem sido veiculada. Repete-se a mesma ladainha, mesmo tendo-se, hoje em dia, novas informações que desmontam toda esta história fantástica e mentirosa. Jornalistas, intelectuais, políticos têm divulgado em livros, palestras, na web outra versão dos fatos. Investigações foram feitas e mesmo assim a grande imprensa ignora. Nem mesmo se procura verificar a veracidade dos fatos. No sítio www.rebelion.org, entre vários outros sítios alternativos na web, no linque http://www.rebelion.org/noticia.php?id=28228, está publicada a matéria ‘Milosevich y los medios: siete declaraciones incómodas’ (Milosevic e a mídia: sete declarações incômodas), que no mínimo poderia servir para restaurar a dúvida nos jornalistas. Mas…

Alguns críticos da mídia atual no Brasil afirmam que o hoje reduzido número de correspondentes estrangeiros dos veículos de imprensa brasileiros dificulta a mudança deste comportamento de ‘cordeiro manso’ da mídia brasileira. Pode ser. Mas, usando-se o exemplo do correspondente Marcos Losekan, da Rede Globo, em Israel, fica difícil aceitar esta tese. Losekan, em quase todas matérias sobre o conflito Israel-Palestina, torce a boca pró-Israel. Os palestinos quase sempre são terroristas, querem acabar com Israel, são radicais, fundamentalistas, intransigentes com as negociações por parte de Israel, EUA, países europeus, o Hammas está fadado a perder se não aceitar as posições israelenses etc.

Não se trata de defender esta ou aquela posição. Mas de mostrar, da forma mais ética, responsável e equilibrada possível, as diferentes posições existentes num determinado assunto. Qualquer repórter pode e deve ter o seu ponto de vista e deve, também, sempre que possível em assuntos polêmicos, mostrar o que pensa e como vê determinado fato. Só que deve, também, mostrar os outros pontos de vista. Não cabe ao jornalista e nem ao veículo de imprensa julgar. A não ser em editoriais ou matérias assinadas, qualquer assunto tem de ser tratado equilibradamente. Losekan, talvez, ache que Israel esteja certo nas suas atitudes. Mas seu trabalho não é defender este ponto de vista, e sim mostrar o que acontece e todos os pontos de vista envolvidos no fato. Se não fizer isto, estará fazendo é propaganda, e não jornalismo. É a mesma manipulação de chamar de presidente os ditadores só por uma questão formal do manual de redação.

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Jornalista