Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Afinal, quem é a ‘sociedade’?

No Brasil atual é corrente que desde o presidente da República até os mais independentes e idôneos jornalistas justifiquem a urgência de suas idéias por conta de uma tal ‘sociedade’ que demandaria isto ou aquilo. Quantas vezes não lemos no jornal, vemos na TV ou ouvimos frases proferidas por políticos dos mais variados espectros semelhantes às seguintes: a ‘sociedade’ pede a instauração de tal ou qual CPI, a ‘sociedade’ quer o aumento da pena para os assassinos de fulano, a ‘sociedade’ demanda mais agilidade da justiça etc?

Da mesma forma como a ‘sociedade’ deseja tanta coisa no auge do calor dos acontecimentos, logo após ‘ela’ se arrefece, esquecendo-se ou se desinteressando daqueles que pareciam ser os seus mais reais e urgentes anseios. Poderíamos concluir em um primeiro momento de que se trata de mera figura de linguagem, utilizada muitas vezes sem uma reflexão aprofundada. E algumas vezes de fato o é. Por outro lado, tal figura, quando vista um pouco mais de perto, pode também se revelar enquanto um bom mote para se pensar a atual estrutura de poder envolvendo os políticos e a grande mídia.

Políticos e jornalistas

Uma primeira pergunta óbvia surgiria para qualquer pessoa que se incomode ao encarar tais substantivos no mínimo ambíguos. Quem seria a tal da sociedade? Será que a ‘sociedade’ se refere à ‘sociedade’ dos jornalistas, comunicadores e afins, como muitas vezes parece se dar a entender? Seria a sociedade formada apenas por aqueles que lêem e acompanham as notícias, que escrevem e-mails para as redações, que se indignam, que reclamam do governo, dos preços, enfim, que de alguma forma exerçam alguma atividade ou ação de caráter público?

E o grosso da população que, como sabemos, encontra-se bem distante de tais atividades? Não fariam parte também de tal ‘sociedade’? Ou será ainda que estaríamos falando tão-somente dos costumeiros auto-intitulados porta-vozes da sociedade – em outras palavras, os políticos e a grande imprensa? Será que na atualidade eles são a própria ‘sociedade’, em um processo de fusão filosófico-simbólica que identificaria uma opinião particular à totalidade? Ou tais porta-vozes verdadeiramente nada mais fariam do que canalizar os reais anseios da ‘sociedade’ – se é que podemos agarrá-la em algum momento como algo monolítico?

Mas, neste último caso, o problema permaneceria: quem seria esta obscura ‘sociedade’ que demonstraria seus interesses apenas para alguns políticos e jornalistas e não o faria da mesma maneira nas eleições, tendo em vista que a dita ‘sociedade’ elege os mesmos políticos que não costumam atender as suas supostas e tão urgentes demandas?

Pautas e ‘verdades’

Estudiosos das ciências sociais poderiam nomear tal uso indiscriminado deste substantivo como uma forma de ideologia. Ou seja, o movimento pelo qual um punhado de pessoas expressaria as suas visões parciais de mundo imputando-as à maioria como representações efetivas da ‘realidade’. Pessoas estas que, a despeito de serem numericamente irrisórias, detêm o poder de fazer as suas opiniões difundirem-se por intermédio dos grandes meios de comunicação, transformando os seus próprios interesses em interesses comuns. A velha universalização do particular tomaria assim lugar no mundo de hoje por meio da junção orgânica dos poderes políticos, econômicos e simbólicos.

É possível, no entanto, devolver-se a pergunta: quais seriam então os reais interesses universais e por qual meio eles viriam à tona?

Uma possível resposta diria que ninguém pode considerar-se pretensioso o bastante para se autodenominar qualquer coisa coletiva ou para se fazer manifestar em nome de causas pretensamente comuns.

É verdade que os anseios particulares, enquanto provenientes de qualquer pessoa socializada, têm muito de coletivo, pois nenhuma manifestação ou forma de pensamento pode ser encarada enquanto puramente individual. Contudo, é impossível que existam interesses pessoais que constituam a representação imediata dos interesses da ‘sociedade’. Antes, todos os interesses devem ser encarados como a expressão de alguém que ocupa uma posição determinada no mundo – ou seja, de uma pessoa que faz parte de um universo X, que estudou em colégios particulares e depois fez seu curso de graduação em uma universidade pública, que pertence à determinada classe ou camada social com tendências políticas Y, que trabalha no veículo de comunicação com fins comerciais G etc.

A grande diferença é que, ao se explicitar e se ter consciência de que quem profere algo o faz ocupando uma posição relativa na sociedade, já se está garantindo de lambujem a não-pretensão de se tornar um ente universal, como o querem se fazer crer tais personagens e instituições do mundo político e jornalístico que escondem suas idiossincrasias sociais atrás de expressões generalizantes.

Eis como uma singela atitude reflexiva poderia muito bem auxiliar no esclarecimento do modo pelo qual os mecanismos de produção de pautas e ‘verdades’ passam do elemento particular para o universal com uma invisibilidade estarrecedora.

Práticas de adulteração

Seria possível ainda objetar-se que os políticos são eleitos por meios democráticos e que cumpririam, portanto, uma função representativa, obtendo como conseqüência o direito de se fazer uso desta figura de linguagem. Quanto à questão da representatividade, não há dúvidas. O fato, porém, é que em um sistema democrático, ainda que visto sob um alto grau de idealização, a canalização dos anseios populares deve obrigatoriamente dividir-se e fazer-se valer por meio de partidos políticos, que, como a própria denominação já demonstra, representam nada mais do que partes da sociedade, e nunca a totalidade. E tais partes, agora sem idealizações e bem como a prática infelizmente nos tem mostrado no Brasil, muitas vezes diluem-se em interesses privados de empresas e lobbies os mais generalizados.

Com isto pretendia apenas chamar a atenção para o quão velha e ultrapassada – e, no entanto, eficiente – é a tática simbólica que leva a cabo a utilização de instrumentos de retórica visando incluir pautas provenientes de determinada visão de mundo particular. E o pior é que, na maior parte das vezes, tais processos de falsa universalização são postos em ação de forma consciente na defesa das bandeiras políticas as mais retrógradas.

Infelizmente, o que se pode ter como resultado de tais práticas de adulteração da linguagem termina sendo a imposição arbitrária de apenas uma – dentre inúmeras outras possíveis – ordem do dia, contribuindo assim para que o fenômeno da ‘imputação de opinião’ se sobreponha ao debate democrático que fomente a ‘formação de opiniões’ no plural.

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Sociólogo, doutorando do Departamento de Sociologia da FFLCH-USP