Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

‘Ah, vai te catar!’

Tem gente que fala pelos cotovelos, com as paredes, com as mãos, fala a torto e a direito, como se tivesse engolido uma vitrola e até – já que estamos na frase dos clichês – tem gente que fala mais que a boca. O jornalista José Luiz Datena, de 53 anos, fala de todas essas maneiras. Mas ele é loquaz mesmo com a sobrancelha esquerda. Naturalmente mais arqueada do que a vizinha, quando ela sobe um pouco mais, e esse movimento é acompanhado de um esbugalhar de olhos, virgem santa… ‘Você veio aqui pra fazer perguntas ou pra me f…?’, foi como o Datena se dirigiu a mim na manhã de quinta-feira, num corredor da Rede Bandeirantes, em São Paulo. Antes disso, ele tinha me dado um ‘Bom dia, como é que tá, velho?’, seguido de um caloroso aperto de mão. E eu ainda não abrira a boca.

Faltavam dois minutos para as 10 da manhã e para o Datena entrar no ar pela Rádio Bandeirantes com o seu Manhã Bandeirantes, um programa de notícias que se estende até as 11h30, de segunda a sexta-feira. Bem barbeado, melhor ainda penteado, ele caminhava incrivelmente devagar, barrigão à frente. Trazia o seu 1,83 m de altura por 112 kg de largura a bordo de um jeans desbotado, mocassins pretos sem meias e óculos escuros do tipo aviador pendurados na gola da camisa azul. A bolsa marrom da Louis Vuitton que lhe caía do ombro parecia pesar uma tonelada, mas acho que era só um pouco de sono da parte dele.

Foi assim, meio se arrastando, que o Datena entrou no estúdio – e de repente se encheu de disposição quando sentou diante do microfone e viu o painel ‘on air’ acender. Então ele virou o monitor do computador para a parede e leu num papel a única fala que não seria de improviso até o final do horário: ‘Bom dia. São 10 horas e hoje é quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011. Vinte e dois graus em São Paulo’. E aí ergueu a sobrancelha esquerda, ao vivo para seus 105 mil ouvintes por minuto: ‘Quem escreveu isso aqui?! Vinte e dois graus estava quando eu acordei, às 6h da manhã. Agora deve estar uns 25, 26’. A editora do programa explicou baixinho que era uma média, já que a temperatura varia de região para região da cidade. ‘Tô nem aí! Eu não faço média nem com a temperatura.’

‘Hiato de ideologias’

Verdade. Passados só mais 15 minutos e o Datena já tinha, como ele costuma dizer, ‘descido o bambu’ nos vereadores paulistanos que aumentaram o próprio salário, no senador José Sarney que chorou ao reassumir a presidência do Congresso Nacional, na Companhia de Engenharia de Tráfego que só multa e nunca ajuda em nada, no ministro Guido Mantega que não dá um aumento melhor pro salário mínimo, nos donos de empresas de ônibus deste País que põem esses ônibus detonados pra transportar a população, na Ponte Estaiada que liga o nada ao lugar nenhum e só está lá pra Globo usar como cenário e, por fim, nos políticos em geral que se tem algo capaz de acabar com o mundo são eles. Mas tinha também pedido que os torcedores corintianos, revoltados com mais uma eliminação da Libertadores, agissem como Gandhi, parassem com o quebra-quebra, porque a não violência é a forma mais eficiente de protesto.

‘Velho, é isso o que eu gosto de fazer, onde eu gosto de estar. No rádio e no SP Acontece, o programa de esportes que eu faço na TV na hora do almoço. Nesses, eu tenho a oportunidade de conter a acidez que é natural em mim, usar o humor e falar de coisas leves’, o Datena me contaria mais tarde, no seu singelo camarim. É ali que ele almoça todos os dias, acompanhado apenas de uma imagem de Jesus Cristo e outra de Nossa Senhora Aparecida, alguns livros e duas combinações de terno e gravata que ele deve vestir para aparecer na frente das câmeras.

Enquanto fazia a primeira troca de roupa e involuntariamente exibia a palavra Cristo que mandou tatuar no antebraço, ele continuou, usando um tom de voz bem mais baixo do que aquele que a gente ouve na TV: ‘Não é legal ser o arauto das coisas ruins. Se eu pudesse, largava agora o Brasil Urgente‘. Trata-se ‘só’ da maior audiência da emissora, com média de 6,2 pontos, para o qual o Datena recentemente renovou seu contrato por mais cinco anos, ganhando, dizem, R$ 500 mil por mês. Trata-se da TV mundo-cão: duas horas e meia de assassinatos, roubos, tráficos, pedofilias, enchentes, agressões, desastres de trânsito e que tais. Trata-se de algo que o Datena diz não gostar. Nem tanto pelo conteúdo, ‘porque segurança pública e prestação de serviço são assuntos de primeira necessidade’.

O que o derruba, ele jura, é a pressão pela audiência que ele mesmo se impõe e a mão pesada dos críticos, que o picham de reacionário pra baixo. ‘Logo eu que sempre fui um cara de esquerda, p…!’. E deixou de ser? ‘Velho, hoje estamos num hiato de ideologias. O capitalismo é essa porcaria que tá aí. E o comunismo ruiu por causa da incompetência dos que não tiveram saco de ler O Capital inteiro, porque é um livro chato pra c…, e não conseguiram avançar além da ditadura do proletariado. Enfim, uma m…’

‘Mais calmo’

O Brasil Urgente pesa tanto que o Datena não deixa ninguém ficar no estúdio, além dos três cameramen. ‘Isso aqui é vestiário do Felipão, velho. O bicho pega’, ele me disse antes de adentrar o recinto, na quinta-feira (3/2). Todos os dias, ao pisar ali, o Datena para nos bastidores ao pé de um altar pequenino com a imagem de Nossa Senhora Aparecida e reza de cabeça baixa. Ninguém sabe o que ele pede. Talvez peça para não ter um enfarte, porque a tensão é braba. Do lado de fora, apesar dos vidros grossos, é fácil ouvir os berros dele com a produção, que fica no outro lado do andar, numa cabine extremamente fria e cheia de monitores de TV.

No total, são cinco operadores, quatro produtores e dois diretores (sem contar os repórteres e editores, que somam 19). Na cabine, o mais tenso de todos parece ser o operador concentrado e quieto que chamam de Paletó. A ele cabe encontrar as imagens de arquivo que o Datena pede. E o Datena não tem muita paciência. ‘C…, cadê a matéria? No tempo da fita ficava tudo à mão. Agora com esse monte de computador aí e vocês não acham nada, c…’, ele brada, assim mesmo, c… duplicados.

‘Quem trabalha com o Datena sabe que é assim, ele cobra mesmo, reclama. Como já foi repórter, conhece bem o que se passa na rua, tem feeling e não perdoa coisa malfeita’, diz o diretor Simão Scholz. O Brasil Urgente começa com uma lista de reportagens previstas, numa ordem prevista, tudo nos conformes. Mas o Datena vai mudando tudo no calor da hora, de acordo com a oscilação da audiência (a dele, a da Record e a do SBT, as rivais com quem briga pelo segundo lugar no horário). ‘Separa aí a matéria da Aninha, aquela menina transplantada que eu entrevistei anos atrás.’ ‘Quanto tempo mais tem isso aí? Corta, p…, vamos pro helicóptero como o comandante Hamilton.’ ‘Alguém me consegue um criminalista pra rebater isso aí.’ Às vezes, o vestiário do Felipão pode parecer o paraíso.

A casa adora, obviamente. Diz o Fernando Mitre, diretor de jornalismo da Band e chefe do Datena: ‘Cobrando, criticando, denunciando, apontando desvios de todo tipo e defendendo a população, o Datena incomoda muita gente e faz isso com uma força verbal impressionante. É para incomodar mesmo. Ele é uma espécie de defensor do interesse público e isso significa fiscalizar o poder e os poderosos. Ninguém nunca ousou me ligar diretamente para pedir a cabeça dele. Mas as reclamações são inevitáveis’.

O Datena sofre processos por suposta ofensa a ateus, a homossexuais e aparece em segundo lugar no ‘Ranking da Baixaria na TV’ feito pela Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados. Por outro lado, é o 12º brasileiro mais confiável, segundo pesquisa do Ibope de um ano atrás. Mais confiável que Ronaldo, José Serra, Hebe Camargo, Faustão, Paulo Coelho, Xuxa, Aécio, Dilma e por aí vai. Com tanto ame-o ou odeie-o, e também para encolher o seu eu interior briguento e valentão, um dia o Datena quis fazer análise. ‘O cara colocou uma cadeira vazia na minha frente e disse que aquilo era a minha mãe, que eu tinha que conversar com ela para ele assistir. Três meses depois ele me contou o óbvio: que eu não sou louco, apenas reajo de forma exacerbada em certas ocasiões. Mas hoje estou bem mais calmo, nem tenho condições clínicas de sair na mão com alguém’, diz, com certo pesar, o marido da d. Matilde, pai de cinco filhos, avô de três netos e filho de uma costureira e um porteiro de Ribeirão Preto.

Papo de mala

Em 2006, o Datena passou por uma cirurgia de 12 horas para a retirada de um tumor no pâncreas. ‘Também me arrancaram o baço, desvirginaram todos os meus buracos com sondas e ainda me deixaram essa hérnia aqui’, ele aponta um calombo na barriga. ‘Já marquei sete vezes a cirurgia para resolver isso. Não apareci em nenhuma, morro de medo de hospital.’ De tudo isso, resultou um Datena que ‘opera por instrumentos’, mais precisamente por 18 remédios diferentes que ele toma todos os dias, fora as injeções de insulina. ‘Até sexo, hoje, eu só faço dopado’, ele entrega, referindo-se ao Viagra. ‘E ainda querem que eu seja um cara equilibrado, contido. Ah, vai te catar!’, ele dispara, não necessariamente em mim, eu quero crer. A propósito, ‘vai te catar’ é uma expressão que o Datena gosta de usar. E usar com vontade. Uma semana e meia atrás, quando ele rebateu uma crítica que o atacante Ronaldo fez ao jornalismo da Band, entre bobalhão, baleia, trouxa e outros elogios, furibundo, ele lascou 13 ‘vai te catar’ em meio a uma chuva de perdigotos. ‘Ronaldo, vai te catar, velho!’

Na volta do almoço, em que garantiu ter pouco dinheiro no banco, preferindo investir tudo que ganha em imóveis (ele até me mostrou, no iPhone, fotos de sua mansão de sete dormitórios no Guarujá), Datena deixou uma generosa gorjeta ao taxista. ‘Toma aí, velho, por você ter me aguentado falando tanta besteira.’ No caminho, ele tinha me dito que seu plano é ir morar em Goiânia, onde estão seus filhos e onde ele comprou uma emissora de rádio – e, quem sabe, apresentar um talk show. ‘Acabando meu contrato com a Band, não quero mais. Será o fim do Datena da grande televisão. Até outro dia eu não tinha p… nenhuma. Era um jornalista f… como tantos outros, morava numa casa em que eu e minha mulher precisávamos encostar o colchão na parede para ter uma sala de estar. Hoje eu ganho um salário que é um absurdo, mas não tenho condições físicas de aproveitá-lo. Posso comer no melhor restaurante do mundo e o meu sistema digestivo é insuficiente para isso. Chega.’ Ele parecia estar sendo sincero.

E então, no meio da tarde, quando pisamos na Band novamente, uma mulher muito maquiada, puxando uma mala de rodinhas, saltou na frente do Datena: ‘Oi, eu sou de Goiânia, conhecida do seu filho’. Ele, simpático: ‘Ah tá. Todo mundo que conhece os dois fica surpreso, diz que não nos parecemos em nada um com o outro. Agora, eu só não sei se estão me elogiando ou me criticando’. Ela, sarcástica, indicou que acreditava na segunda opção: ‘Hahaha! O que você acha?’ O Datena se despediu já de sobrancelha esquerda levantada. E na escadaria logo adiante, voltou-se pra mim: ‘Tá vendo, velho? Só porque eu grito na TV, faço programa policial, lido com violência todo dia, as pessoas se acham no direito de serem mal-educadas comigo. Acham que eu sou forte para aguentar esse tipo de ofensa. Ah, vai te catar!’