O tema da lógica binária, realmente, renderia ensejo para verdadeiros tratados para quem se resolvesse a estudar o comportamento da mídia em relação aos fatos que se desenrolam e que lhe incumbe informar.
Limitar-me-ei, entretanto, a uma série de três artigos para o fim de contribuir um pouco mais para a reflexão sobre este tema.
Todos acompanhamos com ansiedade o que vem acontecendo em relação ao destino dos 700 reféns na Colômbia. O comportamento dos meios de comunicação no Brasil, procurando converter o presidente Uribe no herói do caso, está bem documentado no texto do professor Gilson Caroni Filho [‘Chávez e a imprensa refém‘].
Com efeito, o papel de Chávez como mediador, diante do fracasso no caso do menino Emmanuel, viria a ser empregado como uma verdadeira peça de um jogo em que menos importaria a sorte dos reféns do que, propriamente, a vitória do ‘bem’ sobre o ‘mal’.
O ‘bem’ e o ‘mal’
A militância jornalística torcia, praticamente, pelo fracasso das negociações, sem se dar conta de que isto significava torcer pela morte dos reféns – de todos os reféns –, ao passo que torcer pelo sucesso das negociações não implicaria necessariamente adesão ao chavismo ou às Farc – cuja classificação como terroristas ou insurgentes [‘Farc: terroristas ou insurgentes?‘] implicaria, no meu sentir, a mesma classificação à sempre esquecida (porque identificada com os valores da ‘direita’, para usar uma expressão que considero gasta) Ku-Klux-Klan – organização nascida do ressentimento dos fazendeiros escravagistas derrotados na Guerra Civil de 1861-1865 e que é votada contra tudo o que represente a destruição do sacrário ‘branco, anglo-saxão e protestante’ e que, na imposição de seus dogmas, invariavelmente apela para o terror e a violência, que freqüentemente é olvidada nas análises sobre o terrorismo.
A torcida, dir-se-ia, estaria posta na realização de uma mega-operação em que militares supertreinados crivassem de balas os vilões e resgatassem os reféns.
O problema é que operações desta natureza oferecem um grau muito mais alto de que os próprios inocentes em prol de quem fossem levadas a cabo tenham o seu sangue derramado também – e quem não tenha, como a maior parte dos seres humanos, vocação para santo ou herói de guerra, não faz diferença entre ser atingido pelas balas do ‘bem’ ou do ‘mal’.
Projeção positiva
Não se deram conta tais militantes de que a própria constatação de que as Farc estejam a utilizar os reféns e prisioneiros como ‘escudos humanos’ já é, por si, apta a desaconselhar a utilização das operações ‘Rambo’ que tanto deliciam as torcidas organizadas, sequiosas do sangue das pessoas a quem odeiam, não importa a que preço.
Não se deram conta de que o comum dos mortais não é herói e não nasce com pendores heróicos e, portanto, não se pode supor que os reféns ‘prefeririam morrer nas mãos das Farc a dever algum favor a Chávez’.
No sucesso de Chávez na libertação de duas reféns, como disse o professor Gilson Caroni Filho, ‘não foi apenas a imagem de Álvaro Uribe que saiu enfraquecida no cenário internacional, mas toda uma estrutura narrativa. O êxito da segunda tentativa de libertação remete a questões que ultrapassam o fato em si’.
Mas devo dizer que, a partir de tal sucesso, veio uma outra ilação que se vê na matéria assinada por Diogo Schelp (‘Falta libertar os outros 774’, Veja, São Paulo, nº 2.043, págs. 66-67, de 16/1/2008): a de que Chávez teria urdido, junto com as Farc, o seqüestro para obter projeção positiva na mídia.
Bocardo do intransigente
O professor Ivo Lucchesi, adotando posição de maior prudência, própria de quantos desejem romper com os reducionismos que funcionam como verdadeiros antolhos para cada um dos integrantes das torcidas organizadas disse, de modo, a meu ver, exemplar: ‘Que argumento eficaz terá usado Chávez para o desfecho ‘épico’? Uma declaração pública de aprovação às práticas criminosas das Farc ou a injeção de apetitosos recursos financeiros (petrodólares venezuelanos)? Bem, pode ter havido a junção de ambos’ [‘O pensar faz sofrer‘]. Pode ter havido a junção de ambos, pode não ter havido nenhum deles, há ‘n’ variáveis a se tomar em consideração.
Creio que a questão posta pelo professor Ivo Lucchesi vai um pouco mais além: no clima de polarizações que se tem verificado a respeito do tema, a dificuldade maior é tomar uma posição.
Com efeito, a tese que sobretudo a Veja trouxe acerca de a libertação das reféns ser um indício de que a trama teria sido montada por Chávez e pelas Farc é fragílima, porque, ao final, ficar-se-ia diante daquele famoso bocardo que define o intransigente: ‘Qualquer coisa que faças, estarás sempre errado.’
O ódio a Bush
Se fracassasse na libertação de um que fosse, estaria absolvido, num primeiro momento, da suspeita de haver armado o seqüestro, mas os reféns continuam desgraçados; se exitoso em relação a um que fosse, isto seria prova de que teria armado o circo.
Assim como o professor Ivo Lucchesi deixou bem claro no texto – e concordo com ele – que é possível não apoiar Bush e Uribe sem ser necessariamente apoiador de Chávez, das Farc etc., penso que o interesse de Chávez em uma projeção internacional positiva não é suficiente indicativo de uma cumplicidade na urdidura do seqüestro dos 700 reféns.
Assim como não é suficiente indicativo de que esteja a agir movido por intuitos humanitários – hipótese que somente seria totalmente descartável para quem estivesse convencido de que Chávez seria o próprio Anticristo.
Assim como não é suficiente indicativo de que se tenha maquiavelicamente – no sentido literal, mesmo, do que se encontra no Príncipe – aproveitado de um fato que lhe poderia render dividendos políticos, oferecendo-se como mediador, valendo-se de um ponto de aproximação com as Farc, que é o ódio a Bush.
Mera especulação
Quanto à classificação das Farc, repito que não me parece que possam ser parametradas ao governo Bush porque não integram o aparelho de Estado (Guantánamo e os Gulags costumam ser apontados como exemplos do denominado ‘terrorismo de Estado’, conceito que também ainda é passível de debate). Mas podem, talvez, tomando como exemplo os próprios EUA, ser parametradas à Ku-Klux-Klan. Ou então aos denominados ‘Contras’, a guerrilha financiada pelos EUA de Reagan à época do governo sandinista da Nicarágua (fato comprovado perante a Corte Internacional de Justiça, em Haia), caso se deseje deixar de lado o viés religioso da KKK.
Mas é importante verificar que, em saindo elas da marginalidade, sua atuação teria de sair do âmbito do arbítrio e conformar-se ao Direito.
Sou contemporâneo do momento em que, após quase quarenta anos na ilegalidade, o Partido Comunista saiu da clandestinidade. Passado um primeiro momento de euforia, alguns dos seus integrantes se deram conta de que, ao ser legalizado, teria o Partido não só de gozar dos mesmos direitos como de se sujeitar aos mesmos deveres que os demais partidos.
O mesmo ocorreu em relação à greve, que, ao ser convertida em direito subjetivo, veio a tornar-se passível de controle em relação às suas causas e às condições em que é exercida, de acordo com a remansosa jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho.
A permanência numa posição de ilegalidade só se mostra desvantajosa quando aquele que a perpetra vem a ser alcançado pelos agentes da legalidade – o que traz, paradoxalmente, a condição de insegurança para quem vive na ilegalidade.
Por isto, é importante a pergunta que foi colocada pelo professor Ivo Lucchesi e ela não está, efetivamente, respondida. Por ora, o que há é mera especulação.
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Advogado, Porto Alegre, RS