Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Alberto Dines

‘‘Bingo!’, grito de triunfo de quem completou uma fileira ou a cartela da víspora, na atmosfera rarefeita do Planalto Central converteu-se na imagem de uma incrível seqüência de trapalhadas.

Símbolo da fortuna, brincadeira com números onde o azar misturava-se à sorte graças a alguns grãos de milho ou feijão, na década da jogatina nos Estados Unidos, anos 20-30, bingo, a interjeição, converteu-se em bingo, o substantivo, nome do jogo.

Obra da proibição e das interdições moralistas que incrementaram a imoralidade, a transformação acaba de completar-se em nossa academia de mágicas. A alegria de ganhar alguma coisa agora é a expressão do inferno astral onde desesperadas emendas saem pior do que apressados sonetos, reparações são mais danosas do que os equívocos e a bobeada seguinte mais flagrante do que a anterior.

O ‘Caso Waldomiro’ ou ‘Waldogate’, começado numa fatídica sexta-feira, 13 (de fevereiro), parece uma incrível comédia de erros, mas pode acabar em tragédia, porque todos os coadjuvantes querem ser protagonistas – no governo e na oposição, na cínica ‘base aliada’ ou na atarantada mídia. E nessa maratona cujo prêmio são as próximas eleições municipais, ninguém tem tempo ou ânimo para enxergar o verdadeiro vilão: a grande delinqüência.

Foi a grande delinqüência que arregimentou um servidor público, foi ela que tentou reviver com Geraldo Magela, Benedita da Silva e Anthony Garotinho a tradição de injetar o dinheiro espúrio da contravenção em campanhas eleitorais.

A grande delinqüência gravou o vídeo que comprometeu Waldomiro Diniz, escolheu a hora e os meios para divulgá-lo e, segundo informa agora a Polícia Federal, produziu outros esmerados vídeos que serão devidamente distribuídos no próximo Oscar de escândalos.

O objetivo da grande delinqüência é fragilizar o aparelho do Estado e acabar com a democracia. A designação foi criada na Espanha em meados dos anos 90 pela Fiscalía Anticorrupción, força-tarefa constituída para devassar uma rede de infrações e ilegalidades bem maior do que o crime organizado, porque vai do narcotráfico à prevaricação política, do terrorismo (no caso, o ETA) às diferentes máfias, da indústria dos negócios escusos ao comércio das transgressões. A grande delinqüência aproveita-se das vacilações dos poderes da República para desmoralizá-la e impor-se como alternativa.

Enquanto todos empenham-se em queimar o ministro José Dirceu, braço direito (ou esquerdo) do presidente Lula, o governo apavora-se e convoca a fina flor da malandragem política para abafar uma CPI facilmente controlada se fosse dirigida para a grande delinqüência e não para as pegadinhas da baixa política.

A regra básica na gestão de crises é não atirar em todas as direções. O governo seguiu a prescrição oposta: enrolou-se em providências disparatadas, convocou Duda Mendonça para uma mandinga salvadora, prometeu no Pará ‘o maior programa social do mundo’, foi à Venezuela ajudar o amigo Hugo Chávez, mas voltou antes porque viu o tamanho da encrenca, mexeu os pauzinhos para nova reforma ministerial e, agora, parece aferrado à Medida Provisória para proibir os bingos como solução para a maior crise dos seus 14 meses de vida.

A grande delinqüência agradece, comovida. Inspirado nos mesmos princípios farisaicos que levaram o recém-empossado presidente Dutra a fechar em 1946 os cassinos para atender à pressão da primeira-dama, dona Carmela, vulgo Santinha, o governo oferece de mão beijada aos donos dos bingos, e à sua vasta rede de parceiros, o reforço dos 120 mil (ou 250 mil?) novos desempregados.

Ao igualá-los aos que servem o narcotráfico, o governo criou num passe de mágica novos 120 mil (ou 250 mil?) furiosos militantes da oposição. Quem organiza suas manifestações, quem os transporta, hospeda, alimenta, quem lhes fornece camisetas, jaquetas e o farto material de propaganda? Conseguirá o presidente Lula vestir o boné desses trabalhadores convertidos em lúmpen?

Do latino ludu, jogo, temos loto, ludo, loteria, loteca. Palavra lúdica, brinca com significados, sentidos e, graças à ludologia, virou ciência. Matreira: revirou um ponto de exclamação e fez dele reticências. O eufórico ‘Bingo!’ já não é mais o mesmo. Se prosseguirem os atropelos, o ‘Eureka!’ de Arquimedes pode transformar-se em sinônimo de idéia infeliz.’



Nahum Sirotsky

‘Pesquisa DataFolha não enobrece a mídia’, copyright Último Segundo (http://ultimosegundo.ig.com.br/), 6/3/04

‘‘Jerusalém – Israel fica cinco horas à frente no relógio. Por exemplo: agora são 14h aqui e 9 da manhã no Rio. Há horas li as edições dos principais jornais brasileiros pela internet. Escuto noticiário de emissoras de rádio daí. Em questão de fontes de informação não existem mesmo distâncias.

As notícias, as versões dos fatos são internacionalizadas em segundos. É claro que nada substitui a vivência. Mas ela não vem pela mídia. É incomunicável. Mas para que todo este meu prefácio?

Só para explicar que me mantenho o mais bem-informado possível. E colegas e amigos daí me ajudam em longos diálogos. O DataFolha não me surpreendeu. No dia 1º de março foram ouvidos indivíduos de 132 cidades.

Verificou-se que 60% aprovam o desempenho do presidente. E 38% o do governo. O povo ama mais o presidente que o governo. Ainda espera os milagres prometidos por Lula. Mas, pasmem, apenas 6% se consideram bem-informados do caso Waldomiro. Como explicar esta contradição?

Desinteresse? Ou falha da mídia? A meu ver, este fenômeno demanda reflexão e estudo. É o que de mais grave revela o DataFolha.

Não estamos chegando à maioria do nosso povo com informações essenciais para o fortalecimento democrático, o aperfeiçoamento das instituições, fazê-lo entender que tem de participar como opinião pública no processo das decisões.

Além disso, o povo comete um grave erro ao entregar seu dia-a-dia e futuro a seus ‘representantes’ sem vigiá-los. Sem os olhos do povo o Brasil continuará na sua tradição de dividido entre os poucos donos do poder e um povo submisso.

A pesquisa indica que o povo não acredita ter influência sobre o poder. Não sabe o que é ou apenas não acredita nas instituições. Esperam um Salvador, um pai grande, alguém que faça todo o necessário. Governo não presta. Político nada vale. Dolorosa falha. Mas de quem? Da escola? Daqueles que se elegem ‘mais e mais uma vez’? Nossa? Da mídia? São questões complexas que exigem pesquisas sem preconceitos, corajosas.

Opino que deveríamos começar pela profissão e seus instrumentos. A pesquisa indica que estamos falhando no que nos justifica: informar todos os segmentos da população.

Criar a linguagem e os meios de interessar. Caímos na rotina. Estamos dominados pela multiplicidade de meios. Conformados. Insuficientemente atentos e criativos. Aqui e no mundo.

Mas não é nossa função consertar o estrangeiro. Devemos nos conscientizar de que no nosso mundo era e ‘é o santo de casa que deve fazer o milagre’. Globalização não significa passar sempre a bola pro outro. É dominá-la no nosso lado.

E como é difícil navegar pela multidão de meios de comunicação! Vivo dentro deles, em inúmeras línguas. Diários, portais, revistas, TV a cabo, rádios etc. A mesma notícia tem sempre variadas versões, segundo o interesse do veículo e do redator.

Urge atenção a horários, pois o conhecimento muda a cada minuto. Aplico a técnica de cruzamento, de comparação. Descontar os óbvios exageros, o que parece ser uso de propaganda de idéias. Mas, esta é a função do comunicador. Tentar se orientar para não desorientar o público.

Não podemos transferir essa responsabilidade. Hoje, é um trabalho parecido ao do homem ‘da inteligência’, a quem cabe informar governos. Se erra demais no entendimento, pode precipitar conflitos ou levar empresas à falência. A informação jornalística distorcida pode derrubar governos.

Como leio em Maria Lucia Victor Barbosa, socióloga, ‘na era da informação o individuo está tão afastado de sua realidade, tão envolvido com seu mundo particular, tão ligado apenas a certas banalidades que lhe dão prazer’.

Alienado. Daí grupos menores, apoiados nos que sabem utilizar a comunicação, fazem o que decidem entre eles. E apenas 6% estão informados. A mídia, nós, temos de encontrar os meios de interessar o povo na defesa de seu destino, ou nunca sairemos do subdesenvolvimento político e econômico. Seremos sempre os que resmungam e se deixam levar. Seis por cento. Incrível. (Correspondente iG em Israel)’



Janio de Freitas

‘Os desafinados’, copyright Folha de S. Paulo, 7/03/04

‘A nota emitida pela comissão executiva do PT, ao final de sua reunião para reafirmar ‘o capital ético e político’ do partido, é deliberadamente mentirosa. O clamor suscitado pelo caso Waldomiro Diniz é devido, ao que afirmam as conclusões expostas em nota da executiva, a uma campanha ‘orquestrada por setores da oposição e da mídia’.

Para evidenciar a falsidade da alegada orquestração entre oposicionistas e mídia, é suficiente lembrar a desproporção entre os espaços e tempos concedidos dia a dia, nos jornais e na tv, a representantes do PT e da oposição para considerações em torno do caso Waldomiro. Há mais, porém.

O governismo predominante na mídia transferiu-se do governo Fernando Henrique para o governo Lula. Dois fatores vêm em socorro dos que desejem defender a mídia: o governo Lula não é mais do que a continuação piorada do governo Fernando Henrique, que tanto encantava a mídia; e a maior parte da mídia aguarda a ajuda financeira cuja fórmula o governo está concluindo. Querer que esses fatores, além de talvez explicativos, não transpareçam atitude movida por interesse e, portanto, incompatível com a propalada ética da mídia, aí já seria demais.

Uma pergunta, a propósito: se a mídia faz ‘campanha sistemática’ (…) ‘visando a enfraquecer o governo’, por que o governo vem se ocupando tanto com a ajuda financeira pretendida pela maioria da mídia? É porque, à maneira sambista da mulher de malandro, gosta de apanhar; é para comprar silêncio e apoio, em prática de corrupção explícita; ou há terceira razão, como, por exemplo, relações governo/ mídia que, ressalvada uma exceção aqui outra ali, têm sido muito satisfatórias de parte a parte?

Em vez de orquestração da mídia com oposicionistas, o que levou às proporções do caso Waldomiro foi a desorquestração do PT, conduzido com a combinação de autoritarismo e inépcia. O próprio Lula teve em mãos a possibilidade de bloquear a progressão do caso, tão logo surgiu, e não a utilizou, ou nem a percebeu.

Na sexta-feira em que ‘Época’ reproduziu trechos do vídeo com Waldomiro Diniz e Carlos Cachoeira, José Dirceu articulou a imediata divulgação do antídoto ao envolvimento do governo (e, claro, dele mesmo). Era o documento conclusivo da comissão interministerial constituída, no gabinete de Dirceu, para estudar a solução a ser dada pelo governo aos bingos. Divulgar a solução estabelecida -estatizar os bingos- enfraqueceria logo a contaminação do governo, cuja comissão decidira contrariamente a qualquer interesse negociado por Waldomiro Diniz.

José Dirceu batalhou naquela sexta-feira pela divulgação do documento. Lula não cedeu à idéia, ao que parece, convicto de que a revelação do vídeo não prosperaria, por se tratar de fato anterior ao seu governo e encerrável com a destituição de Diniz e inquérito policial. A partir dessa primeira gafe, foi uma sucessão de trapalhadas ainda inconcluída.

Enquanto era esperado no Hotel Glória para a festa de aniversário do PT, no Rio, naquela sexta-feira José Dirceu almoçava no ‘Globo’. Já chegara às bancas a revista com a denúncia que atingia o seu gabinete. Revista de propriedade do grupo ‘Globo’. Na ótica paranóide da direção petista, só a revelação da revista deve ser considerada, o almoço cordial, não.

Com a direção partidária que tem, o governo Lula não precisa de oposição. Nem a mídia precisa orquestrar coisa alguma.’



Flávio Aguiar

‘A Revolução dos Bingos’, copyright Agência Carta Maior (www.cartamaior.com.br), 3/03/04

‘Os chefes de Estado brasileiros podem ser classificados em dois tipos, ou através de duas tendências, que podem aparecer combinadas. Há os desbravadores, que são minoria, e os administradores, que são legião. É claro que teremos pendor pelos desbravadores, mas as qualidades dos administradores não podem ser simplesmente desprezadas.

D. Pedro I foi um desbravador, e assim ficou na História: afinal foi ele que desembainhou a espada e deu o grito. Mas depois não conseguiu administrar as contradições do país que fundara, e ao seu ‘Dia do Fico’ sucedeu-se o primeiro ‘Ame-o ou deixe-o’ de nossa História, exigido por nossa nobre classe escravocrata e patrícia, e que levou o imperador de volta ao Portugal de origem. D. Pedro II foi o administrador de mais longa vida política no Brasil: esteve no poder durante 49 anos, embora mandasse de fato a partir de 1848, quando eclodiu e faliu a Revolução Praieira em Pernambuco.

Durante seu mandato, desbravou vários territórios: as artes, imprensa e ciências tiveram apoio que, ainda que tímido, fora desconhecido nos tempos coloniais. Tivemos nossa primeira política externa digna do nome, empregada sobretudo no Prata, graças ao Visconde de Uruguaiana. D. Pedro apoiou o telefone, quando ninguém acreditava no aparelho: graças a isso quem vai à sede da Bell Telephone nos Estados Unidos vê seu retrato na parede ao entrar no vestíbulo do edifício. Mas não importa: D. Pedro II, timorato quanto ao escravismo, ficará na história como um mero administrador de seu longo mandato. Já desbravadora será para sempre sua filha, Isabel, a Redentora, que numa penada assinou o que seu pai não teve coragem de decretar.

Já os presidentes da República Velha ficam no rol dos administradores empedernidos, combinando o atraso da sociedade brasileira com sua vocação exportadora. Vargas desbravou novos rumos, e pagou com a vida por isso depois. Mas vale lembrar aqui que nem sempre o perfil desbravador de um presidente deve-se apenas à sua personalidade. Quando assumiu a presidência, depois da Revolução de 1930, Vargas ganhou o apelido de ‘chuchu’: não tinha gosto, e ia com qualquer coisa.

Mas tinha a seu dispor uma geração de desbravadores, até mesmo dos que iam contra ele: Oswaldo Aranha, Flores da Cunha, Batista Luzardo, Viana Moog, Lindolfo Collor, Gustavo Capanema, Paulo Prado, Sérgio Buarque de Hollanda, Gilberto Freyre, Luís Carlos Prestes, Plínio Salgado na extrema-direita, Agildo Barata na esquerda, nas artes os Modernistas, os Nordestinos, Érico Veríssimo, Villa Lobos, Tarsila do Amaral, Anita Malfatti, Monteiro Lobato, Humberto Mauro, sem falar que Mário de Andrade praticamente fundou o conceito de patrimônio histórico entre nós, transformando montões de pedras em respeitáveis ruínas. Nunca houvera, nunca mais houve uma geração como esta. Getúlio aproveitou. Beneficiou-se: com o trabalhismo e a Petrobrás, fez-se um desbravador.

Dutra foi um administrador da Guerra Fria no Brasil. Juscelino foi um desbravador, de territórios e do futuro. Jânio foi um candidato a desbravador, administrador frustrado por incapaz de administrar a si mesmo, como Collor. João Goulart não conseguiu ser nem uma coisa nem outra: sucumbiu ao golpe, e ficará, embora com a aura de único presidente a morrer no exílio (como o Imperador D. Pedro II) , com a pecha de ser o gaúcho que não resistiu.

Dos ditadores, o único desbravador foi Geisel, que desbravou a distensão e a abertura. Além disso, foi na sua presidência que o Brasil desalinhou-se do apoio automático aos Estados Unidos e também livrou-se do apoio ao colonialismo português. Castelo quis administrar a ditadura, e foi engolido por ela; Costa e Silva foi administrado por sua trombose, ou pela trombose de sua ambição. Médici administrou o Milagre do Horror e o Horror do Milagre, e por isso será sempre lembrado no Inferno mais lúgubre de nossa política. Já Figueiredo foi um administrador de valor, conseguindo manter a consigna de Geisel até o final. Sarney, enfim, foi Sarney, administrador do espólio da ditadura, e FHC administrou a dança neoliberal, nada mais.

Pois é. Chegamos agora ao governo Lula. O que fazer? Bem, em primeiro lugar, esperamos que a estatura da pergunta de Lênin não esmague o interrogado. Por quê? Porque até agora não vemos nada sendo desbravado, e o que está sendo administrado é administrado aos solavancos.

Fevereiro, que poderia ser o mês do lançamento do desfile do crescimento auto-sustentado, acabou sendo o mês da crise de Waldomiro Diniz. Crise? Só porque não há nada no lugar. O caso Diniz merece investigação? É claro! Ao mesmo tempo houve uma tentativa pela imprensa mais conservadora e por parte de partidos sem assunto no Congresso de transformar o caso numa crise institucional, através da exigência do afastamento do ministro José Dirceu. Não há indícios que justifiquem o afastamento; o ministro não está envolvido, a não ser pela pecha de ingenuidade, que é vergonhosa, mas não acusatória. Não há sequer motivos para uma CPI, uma vez que não houve quebra de decoro nenhum. O governo agiu, e agiu de maneira fulminante, fechando bingos e apreendendo caça-níqueis.

Pois é: eis aí, na solução, o problema. O Congresso não tem assunto; nem a imprensa conservadora, nem a libertária. A que veio o governo Lula? Até agora, a resposta é difícil, a não ser pela administração social democrata, nem muito social, nem muito democrata, da pauta neoliberal. No tempo do ‘mar de lama’, na década de 50, Lacerda precisou de meses e meses de martelação para encurralar Vargas, e tinha o Imperialismo, o Comando do Exército, o da Aeronáutica, a UDN, os liberais (sempre muito pouco liberais) a seu lado. Agora, um caso de corrupção de um assessor do Planalto assume a envergadura retórica de uma crise de proporções sem precedentes e improcedentes.

Falta assunto. O que o governo tem oferecido, como alternativa de poder? A verdade é: nada. Administra, até o momento, sua própria falta de ousadia. É claro que há aí uma avaliação política: o governo pensa que essa postura ‘administradora’, e não ‘desbravadora’, é consistente porque não vê, no horizonte, adversários à altura de pôr em risco a sua continuidade. Pode ser. Mas é bom lembrar que o pior adversário está em geral dentro de si: o excesso de apetite pelo poder pode provocar uma inapetência de alternativas.

A História tem algo de implacável. Jânio condecorou Guevara. Mas será sempre lembrado como o presidente que proibiu a minissaia e que renunciou numa overdose de si mesmo. Já Lula pode ter sido o líder da Revolução de Vila Euclides, que demarcou o começo do fim da ditadura. Pode ter sido o líder do partido de esquerda mais interessante e importante das últimas décadas no mundo inteiro. Pode ter conduzido uma tomada da Presidência de metade da América do Sul através de um processo democrático consensual que confere e conferirá notável estabilidade a seu mandato ou seus mandatos. Só que se não cuidar das alternativas e esperanças que sua trajetória ergueu, poderá passar para a História como o presidente que fez todo esse percurso admirável para manter a reforma agrária num adagio lentissimo, casi morto, e para fechar bingos e apreender caça-níqueis de modo presto, prestíssimo, em allegro vivace. E só. Flávio Aguiar é professor de Literatura Brasileira na Universidade de São Paulo (USP) e editor da TV Carta Maior.’



Antonio Delfim Netto

‘De novo, o boato’, copyright Folha de S. Paulo, 3/03/04

‘Temos hoje a cara completa de 2003, o primeiro ano do governo Lula. O resultado econômico foi medíocre: o PIB teve variação negativa de 0,2%. O saldo político foi exuberante: a passagem elegante, tranqüila e civilizada de Fernando Henrique Cardoso para Luiz Inácio Lula da Silva, de uma administração que se pensava ‘social-democrata’ para uma administração que se pensa ‘socialista’, elevou o conceito do Brasil. Somos agora vistos como uma república democrática, que se preocupa com a pobreza e luta pela igualdade e pela liberdade de seus cidadãos e cujas instituições funcionam com normalidade dentro de disposições constitucionais, regime hoje hegemônico no mundo. A segurança com que foi feita a transferência de governo e a atuação do que se supunha um governo ‘radical’ deram nova dimensão política ao país. É uma pena que isso ainda não seja percebido internamente.

Estamos aprendendo a manipular corretamente as instituições e a controlar o tumulto passional que freqüentemente nos envolve. Ainda agora se tenta transformar um lamentável caso de polícia numa grave questão institucional! Insiste-se em criar CPIs, como se elas fossem um instrumento de perquirição da ‘verdade’, quando todos sabemos que geralmente são instrumentos das paixões mais inconfessáveis, eficazes apenas para destruir reputações. Algumas pobres personalidades do Congresso fizeram seu nome como freqüentadoras ubíquas de todas as CPIs! Notáveis a esse respeito são exatamente alguns petistas. Isso para não falar nos que se fantasiam, durante o processo, de Sherlock Holmes, Dick Tracy ou ‘X-9’…

O mal desse arrebatamento ‘moral’, que estranhamente só existe nos partidos quando estão na oposição, é que ele ajuda a aumentar a volatilidade da economia, que é o pasto ideal onde se fartam, em poucas horas, os espertos (e necessários) especuladores. A sexta-feira 13/2 revelou bem isso. Navegando na internet na noite anterior, descobriu-se que uma revista semanal anteciparia a sua edição (o que dá o sinal da importância), revelando um pecado capital de um funcionário da Casa Civil. Isso foi o bastante para que, na primeira hora de expediente, a Bovespa revelasse uma queda de 4%. Na segunda hora, uma recuperação de 3% e, no fechamento, um aumento de 1,8% em relação ao do dia anterior. Uma flutuação de 6,2% num único dia! O mesmo movimento se verificou na cotação do dólar/real. O chamado ‘risco Brasil’ flutuou 7,5% ao longo do dia, terminando abaixo do estabelecido no dia anterior.

A notícia foi, certamente, a causa eficiente. Mas o comportamento ao longo do dia mostra como opera a ‘lei do boato’. O assunto envolvia a Casa Civil. Em princípio, portanto, era da maior importância. A ‘solução’ não era demitir e processar o funcionário (o que foi feito imediatamente), mas o seu chefe, o que envolvia grande ignorância de como funciona o governo. As duas condições para que o ‘boato’ se propague à velocidade da luz estavam dadas. Isso produziu um grande sobressalto na economia brasileira na manhã do dia 13/2.

A tranqüilidade só foi recuperada quando o presidente Lula (com o ar de quem não queria nada) desmontou o boato e garantiu a apuração policial do delito, reafirmando sua credibilidade. (Antonio Delfim Netto escreve às quartas-feiras nesta coluna.)’