Cidadão Kane, de 1941, que marcou a estupenda estréia de Orson Welles no cinema, permite algumas reflexões úteis para quem trabalha com história e memória empresarial. O filme conta a história de Charles Foster Kane, um empresário, que constrói um poderoso império de comunicação: jornais, revistas, rádios e agências de notícias. Hoje, o personagem poderia ser, um presidente de qualquer uma dessas grandes empresas de capital aberto, cotada em bolsas de valores ou alguém enrolado em negócios mal explicados.
Apesar de Welles negar publicamente, a narrativa inspirou-se na trajetória do empresário norte-americano William Randolph Hearst, dono de um império de imprensa, construído a partir da segunda metade do século 19. Tanto que, em decorrência das ‘coincidências’ entre ficção e realidade, Hearst desencadeou uma verdadeira guerra contra Welles, para impedir a produção do filme. Mas Hearst é uma referência datada, faz parte da história de Welles, e hoje é figura irrelevante. Roger Ebert, crítico norte americano de cinema, compara Hearst a Ted Turner, da CNN, a Rupert Murdoch e Bill Gates. Em diferentes países, Cidadão Kane é usado para malhar donos das mídias locais.
A memória do moribundo
O filme começa com a morte de Kane, que pronuncia sua última palavra: ‘rosebud’. Mais do que uma simples palavra, cuja tradução para o português – botão de rosa – é, certamente, um enigma. Do começo ao fim do filme, um jornalista é destacado para decifrar seu significado. Mas apenas descobre que Kane não encontra a sua identidade no trabalho, muito menos a paz advinda – e esperada – desse encontro. Do lado de cá da tela, o espectador percebe que ‘rosebud’ é apenas uma significante, que revela um Kane movido por uma profunda carência e insegurança, que nada tem a ver com a objetividade dos seus negócios e de suas articulações.
Não é o empreendedorismo de Kane, mas sua subjetividade (‘rosebud’), que explica seus excessos e suas loucuras – do apoio a amante, péssima cantora de ópera, à construção de um castelo. A psique, estrutura mental de uma pessoa, pode explicar muitos dos meandros dos negócios. As teorias de administração e marketing têm falado pouco sobre sucessos e fracassos das empresas, que o diga a recente crise financeira internacional, em 2008 e 2009.
As grandes empresas brasileiras, geralmente, registram em livros as demonstrações racionais e a importância dos seus personagens para o desenvolvimento do país e das comunidades em que estão suas fábricas e seus escritórios. Assim é, por exemplo com várias multinacionais brasileiras – Sadia, Vale, Gerdau, Embraer, Petrobras, Votorantim, Natura, Odebrecht entre outras –, que a partir de memórias selecionadas entre seus acontecimentos, narram seus mitos fundadores, seus heróis, seus produtos e marcas.
Poucas das narrativas revelam algo da subjetividade das organizações. Jorge Luís Borges diria que alguma biblioteca de nosso país – ‘iluminada, solitária, infinita, perfeitamente imóvel, armada de volumes preciosos, inútil, incorruptível, secreta’ –, deveria guardar as narrativas de empresas e empresários, protagonistas importantes do desenvolvimento industrial e comercial brasileiro como Olacyr Francisco de Moraes (Grupo Itamaraty), Omar Fontana (Transbrasil), Jorge Wilson Simeira Jacob (Grupo Fenícia), Paulo Diederichsen Villares (Empresas Villares), Eugênio Staub (Indústrias Gradiente), Ângelo Calmon de Sá (Banco Econômico), Matias Machline (Grupo Sharp), Henry Maksoud (Hidroservice), João Carlos Paes Mendonça (Grupo Bompreço), Leon Feffer (Companhia Suzano) e muitos outros.
Cidadão Kane chega ao passado pela palavra, que guardou algum sentimento. A memória empresarial, que pode chegar à condição de memória social é aquela que, de alguma forma, consegue estimular nossos afetos e subjetividades. Através desses afetos, lembramos nossas experiências com empresas, empresários, marcas e produtos. O contrário é apenas o esquecimento ou ruína.
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Jornalista, professor da ECA-USP e diretor-geral da Associação Brasileira de Comunicação Empresarial (Aberje)