Foram três dias de discussão inútil sobre a fome mundial na Cúpula sobre Segurança Alimentar, terminada ontem. Os jornais de sexta-feira (6/6) retratam a pouca importância que a mídia deu à reunião e ao próprio tema da fome que, vez e outra, ameaça parcela importante dos habitantes da maltratada Terra. A exceção é a Folha de S.Paulo, que enviou a Roma o colunista Clóvis Rossi e deu manchete na primeira página: ‘Reunião da ONU sobre a fome acaba em fracasso’.
O Estado de S.Paulo, que já foi mais preocupado com os grandes problemas mundiais, continua no pé de uma possível candidata à sucessão de Lula. Sua manchete: ‘Dilma impediu contestação de Infraero no caso Varig’. Na editoria internacional, a manchete não é tão paroquial: ‘Obama abre campanha na Virgínia’, diz. O Globo optou pelo mesmo caminho, mancheteando: ‘Documentos comprovam que venda da Varig atropelou Anac’. Até o New York Times, pelo menos em sua edição na internet, não deu importância ao tema. E o Jornal do Brasil partiu para algo que não é tão novidade assim, embora importante: ‘Brasileiro é predador do meio ambiente’.
A cúpula organizada pela FAO, braço da ONU para Alimentação e Agricultura, se destinava, segundo o discurso de abertura, na terça-feira, pelo seu diretor-geral Jacques Diouf, a mostrar ao mundo que chegara a hora de agir para acabar com a fome de 832 milhões de pessoas e impedir que a ameaça se estenda a outros dois bilhões em grandes regiões da Terra.
O trigo como lastro
Não será desta vez que a tragédia anunciada do neoliberalismo vai encontrar no mundo líderes realmente dispostos a evitar que ela se concretize em sua plenitude horrenda. Até quando nossos supostos líderes vão deixar por conta exclusiva do mercado a solução para o grave problema da segurança alimentar no mundo? Talvez quando metade da população da Terra estiver se exaurindo o tema passe a interessar a eles… e à imprensa.
A solução é mais ou menos conhecida desde a década de 1930, quando o economista britânico John Maynard Keynes ensinou ao presidente dos Estados Unidos, Franklin D. Roosevelt, a forma mais sensata de sair da crise econômica desencadeada pela ‘sexta-feira negra’ da Bolsa de Nova York.
Não custa lembrar que o ouro serviu de lastro para a moeda até a década de 1970, quando isso mudou por imposição dos Estados Unidos que atravessava uma das crises capitalistas periódicas. Pode-se dizer hoje que o único lastro para a moeda é a confiança, uma commodity cada vez mais rara no mercado, pois nem o dólar, que por um período serviu de referência, é mais confiável. Ou pelo menos, é bem menos que o sanduíche do McDonalds…
Muitos economistas apontam que seria mais inteligente que, em vez de dólares, servissem de lastro bens que pudessem ser estocados e cuja produção se quisesse aumentar. O trigo, por exemplo – ou qualquer outro alimento.
Fortalecendo os especuladores
Talvez assim a ONU pudesse tomar o problema em suas mãos e dizer aos agricultores: vocês podem produzir ‘x’ toneladas de trigo por ano e, se não venderem no mercado, por excesso de produção, vamos comprar para estocar. Ou então vocês mesmos estocam a seu risco e o governo de seus países financia a estocagem. Com isso, a produção do trigo no mundo continuaria aumentando de uma maneira equilibrada com o potencial de crescimento da demanda. O mesmo para outros produtos.
Talvez assim pudéssemos sair do círculo vicioso que se observa hoje, quando, em épocas de muita produção, o preço cai. No ano seguinte, os fazendeiros – ou as empresas agrícolas, como virou moda hoje – estarão desestimulados para produzir aquele bem, há escassez no mercado e o preço sobe, estimulando de novo a produção… É uma situação idiota, que vai de uma crise a outra enquanto milhões de pessoas passam fome no mundo e os especuladores ganham com a escassez.
Não é preciso ter um governo forte agindo sobre a economia, como nos anos 70, para que esse sistema funcione bem no Brasil. Os Estados Unidos, desde o princípio da década de 1930, por sugestão de Keynes, vinham fazendo estocagens estratégicas para os produtos agrícolas – e com isso conseguiram ter a maior produtividade agrícola do mundo. O agricultor tinha horizonte pela frente, pois sabia que podia produzir um ano depois do outro e vender para o mercado ou para o governo. Mas o neoliberalismo chegou para enfraquecer o governo e para fortalecer os especuladores também nessa área básica da economia.
Fertilizantes afetam fixação do nitrogênio
Além disso, como alertou Fritjof Capra em O Ponto de Mutação, as grandes companhias agropecuárias arruínam o solo de que depende nossa própria existência, perpetuam a injustiça social e a fome no mundo e ameaçam seriamente o equilíbrio ecológico global. Uma atividade que era originalmente dedicada a alimentar e sustentar a vida converteu-se num importante risco para a saúde individual, social e ecológica.
Há mais de duas décadas, esse físico preocupado com a saúde da terra dizia que embora a biomassa seja um recurso renovável, o solo onde ela cresce não é. Certamente podemos esperar uma significativa produção de álcool a partir da biomassa, incluindo o cultivo de plantas para esse fim, mas um programa maciço de álcool para alimentar as necessidades atuais de combustível líquido esgotaria nossos solos no mesmo ritmo em que estamos hoje exaurindo o carvão, o petróleo e outros recursos naturais.
E não resolve tentar recuperar o solo com fertilizantes e outros produtos químicos, pois eles são desastrosos para a saúde do solo e das pessoas. Eles perturbam o equilíbrio do solo. Por exemplo, reduzindo a quantidade de matéria orgânica e a capacidade do solo para reter a umidade. O conteúdo do húmus é exaurido e a porosidade do solo diminui. Este fica duro e compacto, o que obriga os agricultores a usar máquinas mais poderosas, compactando mais ainda o solo. Por sua vez, o solo estéril fica mais exposto à erosão provocada pelo vento e pela água.
Tanto isso é verdade que, em 1976, dois terços dos condados agrícolas dos Estados Unidos já eram considerados áreas de calamidade devido à seca e, nos 25 anos anteriores, metade do solo arável no estado de Iowa havia desaparecido. O uso maciço de fertilizantes químicos afetou seriamente o processo natural de fixação do nitrogênio ao danificar as bactérias do solo envolvidas nesse processo. Por conseqüência, as culturas estão perdendo sua capacidade de absorver os nutrientes do solo e ficando cada vez mais viciadas em produtos químicos sintéticos.
Qual o espanto do fracasso?
O problema se agrava quando amplas extensões de terras agricultáveis são ocupadas pela monocultura. Por exemplo, pelos canaviais. As usinas tentam manter a produtividade usando mais e mais fertilizantes e agravando mais e mais a situação. O uso excessivo de fertilizantes químicos resulta em enorme recrudescimento de pragas e doenças, que os agricultores contra-atacam pulverizando as áreas plantadas com doses cada vez maiores de pesticidas. Ou seja, combatem os efeitos do abuso de produtos químicos pelo uso de mais produtos químicos. Eles e seus solos ficam mais pobres e os fabricantes de produtos químicos mais ricos. O uso maciço de pesticidas começou em fins da década de 1940 e desde então as perdas de safras causadas por insetos dobraram. As culturas são agora atacadas por novos insetos que se transformaram em pragas cada vez mais resistentes a novos inseticidas.
Diante de um quadro desses e da falta de líderes mundiais (alguém ainda acha que o presidente do Brasil é um líder capaz de contribuir para a solução do problema?), qual o espanto em que a Cúpula sobre Segurança Alimentar tenha sido um fracasso? No fim da reunião, o chanceler italiano, Franco Frattini, admitiu: ‘Se os líderes mundiais não conseguem pôr-se de acordo ao menos para evitar os danos de uma situação dramática de emergência alimentar, isso me preocupa.’
Ainda bem que há alguém preocupado com isso…
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Jornalista, Belo Horizonte, MG