Thursday, 14 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Ana Carolina e o princípio do prazer

Brasil sexista e moralista. Tamanha hipocrisia se espalha por esse país de tamanho continental e pensamento, muitas vezes, tacanho. A educação sexual é ainda um assunto tratado na “boca miúda” pelas instituições de ensino e aprendizagem. Por isso, as orientações a respeito acabam vindo das ruas, horrorizando setores conservadores que buscam, com mãos de ferro, zelar pela moral doméstica recatada. Uma cantora que vem problematizando esse “caretismo comportamental” é a artista mineira Ana Carolina. Na edição 1.936 da revista Veja, datada de 21/12/2005, foi manchete de capa a seguinte declaração da cantora: “Sou bi. E daí?”

Ana Carolina, com firmeza, afirma: “Acho natural gostar de homens e mulheres”. Optando por uma linha mais comportamental e menos politizante no tratamento da questão da bissexualidade, a cantora justifica assim esta escolha: “Sou contra essa postura de levantar bandeiras para defender o homossexualismo, pois fica parecendo que ser gay é uma doença.” Pertencendo a uma era pós-engajamento, o problema do posicionamento da artista se encontra na despolitização das causas sociais, o que é um prato cheio para arranjos alienadores que prejudicam a expressão de uma alteridade mais autêntica e respeitadora.

Iniciativas individuais, quando somadas, alcançam com mais razão e sensibilidade a atenção pública. Mesmo assim, as canções de Ana Carolina destacam o universo sexual-afetivo, a partir de uma perspectiva arrojada e ousada, colaborando, assim, para um exame mais humanizado dos meandros que tocam o complexo campo da nossa libido. A artista consegue aliar irreverência, despojamento, bom-humor e leveza para falar de sexo sem a tradicional gravidade que o enquadra como “assunto cabeludo”.

Relações mais horizontais na esfera social

Destacaremos neste artigo as seguintes músicas cantadas por Ana Carolina: “Eu comi a Madona” (2006) e “Libido” (2013). A primeira composição se desenrola assim:

“Me esquenta com o vapor da boca/E a fenda mela/Imprensando minha coxa/Na coxa que é dela/Dobra os joelhos e implora/O meu líquido/ Me quer, me quer, me quer e quer ver/Meu nervo rígido/É dessas mulheres pra comer com 10 talheres/De quatro, lado, frente, verso,/embaixo, em pé/Roer, revirar, retorcer, lambuzar e deixar o seu corpo/Tremendo, gemendo, gemendo, gemendo/Ela tava demais/O peito nu com 5 ou 6 colares/Me fez levitar em meio aos 7 mares/E me pediu que lhe batesse, lhe arrombasse, lhe chamasse/De cafona, marafona, bandidona/Fui eu quem bebi, comi a Madona/Chegou com mais três amigas, cinta-liga/Perna dura, dorso quente, toda língua e me encoxou/Me apertou, me provocou e perguntou:/Quem é tua dona? Quem é tua dona?/Fui eu quem bebi, comi a Madona”.

Por sua vez, a segunda canção apresenta o seguinte texto: “No anúncio da revista ou na obra de arte/Na foto do jornal ou na letra do encarte/Suíte do motel, sala do ‘apart’/No meio, bem no meio o calor que invade/A libido está em toda/A libido está em tudo/A libido está em toda parte/A libido está em toda parte/Nas cabeças de Platão, Maquiavel e Descartes/No azul da atmosfera ou no vermelho de Marte/Na porta do seu corpo ou porta-estandarte/No topo de um vulcão ou fulminando de enfarte/No mundo virtual ou na realidade/No ‘hall’ do elevador, na mão do biscate/No gesto do plebeu ou da majestade/Em quem chega bem cedo ou quem já vai tarde/Pulsando na pureza ou na crueldade/Na ânsia do desejo ou na rivalidade/Às vezes até finge só amizade,/Mas move o mundo inteiro sem dó nem piedade/A libido, toda/A libido, tudo/A libido está em toda/A libido está em tudo/A libido está em toda parte/A libido está em toda parte…”

Ana Carolina traz à baila um panorama sexual libertário ambientado à margem da história da repressão humana como um conflito entre a sexualidade e a civilização, demonstrando que a busca e a negação do prazer constituem a essência da felicidade e infelicidade humana. Estamos, nesse contexto, diante de um antigo paradoxo comportamental, envolvendo a doce liberdade e a amarga censura. A cantora mineira faz elogios explícitos ao prazer libidinal que, segundo as teorias freudianas, foram ofuscados pelos processos de dominação civilizacional. Freud demonstra claramente que o homem abandonou seus instintos básicos e a satisfação integral de suas necessidades, que são seu objetivo primário, para viabilizar a construção da civilização.

Nestas canções, a sutileza erótica e a contundência pornográfica se aliam em defesa de uma performance corporal inspirada e transpirada pelo fluir do gozo. Assim, a voz poética trazida pela cantora mineira se opõe às intervenções de Thanatos para se deliciar com o fulgor de Eros. Eros representa a vida e os instintos sexuais, e é governado pelo princípio do prazer que impulsiona o ser humano na superação da repressão para obter satisfação e desfrutar de atividades lúdicas. Por sua vez, Thanatos representa a morte e os instintos de autopreservação, e é regido pelo princípio da realidade, que leva o ser humano a adiar o prazer, buscar a segurança e desempenhar atividades produtivas.

As realidades encenadas por Ana Carolina apresentam o importante papel de enaltecer o princípio do prazer vitorioso, articulando emancipação sexual e superação dos mecanismos de dominação na vida social. Reunindo vida e obra, a artista mineira propõe abertamente uma autêntica revolução dos costumes que possa conduzir os indivíduos a uma gratificação maior em suas vidas sexuais e, ao mesmo tempo, promover relações mais horizontais na esfera social.

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Marcos Fabrício Lopes da Silva é professor da Faculdade JK, jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários