Minha avó perguntava para mim o que estava escrito no letreiro do ônibus. Eu, prontamente respondia: ‘Praça da Bandeira’. Minha avó pedia também para que lesse a bula dos remédios, assim como as ofertas do supermercado nos panfletos ou as notícias do jornal. Ela não sabia ler e também não sabia escrever. Minha avó, assim como milhões de brasileiros, era analfabeta, vítima de um Estado incompetente que não supria (e duvido muito que hoje supra) aos seus cidadãos direitos básicos como a educação, saúde etc.
Embora analfabeta, minha avó paterna criou seus nove filhos e ensinou para cada um deles conceitos elementares como o respeito ao semelhante, o trabalho, a religiosidade e a necessidade de estudar. Longe de ter frequentado ambientes acadêmicos, minha avó sabia como viver em conjunto e ser tolerante aos semelhantes, por mais ‘diferentes’ que eles fossem – resultado de uma herança cultural onde honra, palavra, coerência e respeito tinham importância e condição sine qua non para a vida em comum.
Na semana passada, o cantor, compositor e aspirante a intelectual Caetano Veloso, ao elogiar Marina Silva, categorizou o presidente Lula a uma casta menor chamando-o de ‘analfabeto e cafona’. Indiferente à ilusão dos conservadores de vanguarda de que, de fato, o presidente Lula seja analfabeto, o que chama a atenção na frase de Veloso não é a ofensa, mas a crença escancarada de que os analfabetos são pessoas inferiores e párias de uma sociedade que os letrados desconsideram ou abominam.
Mentes vazias e pavorosamente semelhantes
Sócrates acreditava que a partir do momento em que o homem lê, escreve e reproduz o que pensa, encarcera seu pensamento. Livre das nuvens de palavras e do conhecimento reproduzido, Sócrates fazia o seu melhor pensando horas a fio sua imensa e contraditória obra, base da filosofia ocidental. Sócrates, defendem alguns historiadores, era analfabeto. Daí o fato de não ter deixado nenhuma vírgula para a posteridade do que pensou. O que se sabe sobre ele foi produzido pelos seus discípulos, em especial Platão e Aristóteles.
Entre viver sob a luz do conhecimento e a obscuridade da ignorância, trava-se uma refrega especial na contemporaneidade. O antropólogo Lévy-Strauss, falecido recentemente, não via diferença nas relações humanas. Sejam elas estabelecidas por índios bororos/nhambiquaras ou habitantes das modernas cidades ocidentais, analfabetos ou letrados, primitivos ou civilizados.
Talvez o conhecimento descortine as atrocidades do próprio homem ao seu semelhante e ao mundo. Pior, o domínio da ciência tem levado alguns homens a caminhos incertos manipulando sua criatividade para a arte da destruição. Wittgenstein, uma das mentes mais privilegiadas do século 20, ficou aliviado quando soube que iria morrer, tamanha era sua angústia derivada de seu vasto conhecimento – a luz que lhe permitiu ver o equívoco que era a humanidade. Viver sem saber ler ou escrever permite alguns confortos, como de se abster da complexa, viciada e excludente modernidade e de sua parafernália tecnológica que gera informação em cascata para fabricação de mentes vazias e pavorosamente semelhantes.
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Jornalista, Belo Horizonte, MG