Thursday, 28 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1316

Antes de tudo um jornalista

Márcio Moreira Alves, o Marcito dos familiares e amigos, está de partida… Após anos de sofrimentos que levaram a quase impossibilidade do convívio com a legião de amigos queridos que houvesse sabido construir ao longo da sua existência, e dos dolorosos meses finais de silêncio imposto pelas sequelas do seu AVC, o nosso querido e inestimável Marcito já está tendo desligadas as sondas, os aparelhos, a vida artificial… Só nos resta fazer uma grande cadeia de orações e de pensamento positivo para que tenha um desenlace doce e tranquilo…

Seu nome está inscrito ma história brasileira. Mas ele foi, acima de tudo, um jornalista. Um dos melhores que o Brasil já teve. Prêmio Esso de Jornalismo aos 22 anos, pela cobertura para o Correio da Manhã do fato político de repercussão nacional do tiroteio na Assembléia de Alagoas durante a votação do impeachment do governador Munhoz Falcão – no qual resultou ferido por uma bala perdida em pleno recinto da Assembléia – Marcito se reencontrou com o jornalismo já na década final da sua vida, como colunista político respeitado, primeiro do Estado de S.Paulo, depois do jornal O Globo.

Vindo de uma família quatrocentona, de fazendeiros ex-donos de escravos e da qual saíram dois presidentes da República, foi no campo da política o traidor par excellence da sua classe de origem. A piada sempre correu no meio político e entre seus amigos mais chegados: por ocasião do golpe militar de 1964 – que apoiou nos seus primórdios – teria sido visto falando com aquele seu jeito incorrigível de menino mimado: ‘Titio me disse que…’

Bem, o ‘titio’ era o velho líder da chamada banda de música da velha UDN, Afonso Arinos, o homem dos discursos mais virulentos em contra do presidente Vargas, na crise de 64, o mais insigne dos líderes históricos da rançosa UDN (diga-se de passagem que, ao final da sua vida, Afonso Arinos foi um homem de uma correção extraordinária, relator da Comissão de Notáveis que redigiu o anteprojeto da Constituição, em 1987, um dos fundadores do PSDB ainda social-democrata).

Respeito mútuo

Marcito foi uma das primeiras vozes que, após a consolidação do golpe militar, se levantou para combater as violências e ilegalidades do novo regime. Escreveu os primeiros livros com as denúncias das torturas que se cometiam nos calabouços e nos quartéis. E também, com a sua sensibilidade de formação católica (sua mãe, a Dona Branca, era conselheira do Papa no Vaticano) foi um dos primeiros a perceber a importância da renovação da Igreja pós-concílio Vaticano II e a descrever a Igreja dos pobres que surgia e se consolidava por todo o Brasil e América Latina.

Eleito deputado em 1966, esteve na raiz do pretexto militar para o ‘golpe dentro do golpe’: os seus discursos na Câmara conclamando as namoradas dos jovens cadetes a boicotar os desfiles militares do Sete de Setembro foram o estopim para a ira da linha dura militar que culminou com a quase deposição de Costa e Silva e a decretação do AI-5. Pretextos, pretextos, pretextos…

Refugiado no Chile (onde pude com ele estreitar a amizade e a convivência, depois que, juntamente com a minha companheira Beatriz, pudemos sair do Brasil clandestinamente em 1969 com a ajuda, entre outros, de um outro homem notável que foi o seu pai, Dr. Márcio Alves), em 1970 transferiu-se para a França. Marie, sua companheira de então, era uma aristocrata francesa nobre de sangue, mas acima de tudo nobre de caráter e dignidade. O casamento deles, nos anos 50, parecia um conto de fadas: realizado em um castelo da família de Marie, no sul da França, foi um acontecimento das mil e uma noites.

Pois este homem foi sempre um ‘traidor’ da sua classe. No combate às torturas e à repressão dos regimes militares na América Latina e no Brasil tornou-se homem de esquerda e de convicções que jamais abandonou posteriormente.

Mudou-se para Paris para Lisboa atraído pela movimentação política e social após a Revolução dos Cravos e somente pode retornar ao Brasil (era um dos homens mais odiados pelos setores duros do regime militar) com a Anistia de 1979. Eu havia retornado ao Brasil alguns meses antes e tive a oportunidade de recebê-lo no aeroporto e de participar, junto com a sua família, da alegria das festas em sua recepção no retorno à Pátria.

Nunca fomos próximos politicamente. Mas nunca deixamos que as divergências políticas contaminassem o nosso respeito e amizade recíprocos.

Quando for escrever as minhas memórias, muitos e muitos episódios curiosos e interessantes da convivência com o Marcito vão ocupar bastante espaço. Que figuraça!

Na memória

Montamos juntos no Chile e França um comitê para a divulgação das torturas e crimes políticos que se cometiam no Brasil, juntamente com o José Serra, a Tetê Morais, o Sérgio então companheiro da Tetê que tão tragicamente desapareceu na angústia dos descaminhos do Brasil, e tantos companheiros mais. Publicávamos um boletim de nome infeliz – FBI, Frente Brasileño de Informaciones, em sua versão em espanhol, e Front Brésilien d´Information, em francês, que por muito tempo era a única fonte externa de divulgação sobre o que se passava nos subterrâneos do ‘milagre brasileiro’.

Muitos de nós pagamos até hoje um duro preço por esta atividade que se fazia na clandestinidade, cercada do maior sigilo. Durante muito tempo as reuniões semanais se faziam na minha casa, no centro de Santiago, em frente ao prédio central da Universidad Católica – onde eu e Beatriz estudávamos – em reuniões comandadas pelo José Serra. Que figura também o Serra, outro que proporcionará algumas histórias muito divertidas em minhas memórias.

Mas Marcito tinha, acima de tudo, uma vocação de jornalista. Creio que foi no espaço das suas colunas no Estadão e posteriormente no Globo que terminou por ser, nos últimos anos, o substituto do grande Castelinho [Carlos Castelo Branco (1920-1993)] dos bons tempos do Jornal do Brasil. Voltou a ser a voz escutada e reconhecida, cortejado pelo mundo político, observador implacável dos grandes fatos da vida política nacional. O papel que exerceu vem sendo desempenhado agora por outro grande jornalista – Merval Pereira –, outro homem, outro estilo, mas o mesmo compromisso com o jornalismo independente.

Um amigo comum me disse na sexta-feira (6/3), quando lhe dei a notícia do estado terminal do nosso Marcito: ‘A história do Brasil teria sido diferente se, justamente no momento em que o Marcito teve o seu primeiro AVC – quando começava a desvendar-se a história do mensalão – sua coluna política no Globo continuasse de pé’.

É possível que sim. Mas vou mais além: por uma destas circunstâncias do Destino que marcam as vidas dos grandes homens, a História do Brasil teria sido distinta sem a presença marcante do Marcito. Quem o conheceu, saberá as razões de por que não estou exagerando ao fazer este comentário.

Que Marcito parta em paz para esta nova travessia. E nestes momentos de dor, o sofrimento por nós compartilhado com Marie – a mãe dos seus filhos, Madalena – sua companheira dedicada, Maria Helena e Branquinha, as irmãs queridas, Leonor, Isabel e Pedro, os filhos que adorava… Que grande homem o Brasil vai perder! Tenhamo-lo em nossas memórias, para benefício desta e das gerações futuras.

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Economista