Hitler não era fascista, e sim, nazista. Toda vez que alguém chama algo de ‘fascismo’, acredite, a chance de estar errado – e de má fé – é de mais de 98%. A maioria dos pensadores campeões da liberdade foi chamada de fascista. Sim, assim foi feito, por comunistas stalinistas, é claro. Mas, agora, chamar tudo de fascismo virou moda. Nos Estados Unidos, a direita mais reacionária não chama Obama de comunista ou socialista por sua luta em favor da expansão do sistema de previdência de saúde para mais gente, e sim, de fascista e nazista! Claro, a direita sacou que esta é a estratégia melhor. Antes um erro de má-fé bom de marketing do que um erro de má-fé capaz de ser anulado virando a seta. Se chamasse Obama de socialista, para cometer um erro menor (o maior seria dizer ‘comunista’), essa direita poderia ouvir de algum popular a réplica ‘fascista’.
A modinha de que todo mundo é fascista chegou agora na boca de menos de meia dúzia de viciados em tabaco – e com aval de uma estranha imprensa escrita. Eles não querem só fumar, eles querem que as crianças fumem, os garçons fumem e, enfim, todo mundo que está ao seu lado fume. Não estou me referindo ao homem e à mulher civilizados, que fumam educadamente. Estes já sabiam que o cigarro provoca câncer e outros males e estavam cientes de que não deveriam jogar fumaça no mundo para além do que a indústria poluente ainda faz. Todavia, quando uma parte da população não se civiliza por educação individual, por uma compreensão individual, os seus representantes democraticamente eleitos podem fazer projetos civilizadores para que ocorra a educação geral pela via da lei. Não foi Hobbes quem advogou isso, e sim o liberal Locke.
Em favor de um mundo clean
A razoabilidade dessas leis fica a critério da própria população. No caso da lei antifumo, a maioria da população – fumante ou não – está gostando de ver a cidade e os ambientes mais limpos e saudáveis. Os que chamam todos de fascistas por conta de regrar o fumo, e que sustentam a odiosa indústria do fumo (seria esta indústria, na conta da terminologia desses viciados, liberal, não fascista?), são mais ou menos os mesmos que não queriam, nos anos oitenta, colocar os filtros nos escapamentos dos carros. Alguns se diziam de esquerda e faziam economia para a General Motors. Mas, aos poucos, eles foram sendo civilizados pela lei. Hoje, São Paulo perdeu aquele aspecto horrível da Londres antiga. Os indicadores acusam um número menor de doenças de todo tipo por conta da melhoria da qualidade do ar em São Paulo.
É claro que a lei antifumo não surgiu por conta de freiras, padres e outros religiosos. Muito menos foi fruto de algum filósofo. Nem mesmo dos médicos. A lei antifumo surgiu única e exclusivamente porque, no mundo todo, há a constatação de que o montante de impostos pagos pela indústria do tabaco já não é mais competitivo com o que o Estado gasta no setor público em termos de saúde, tentando amparar os fumantes e não fumantes doentes. Pois, sabemos, o problema do viciado em cigarros não é ele, é o fumante que não quer fumar. O viciado em cigarros diminui seu tempo de vida, morre cedo, não dá tanta despesa. Todavia, os que não fumam ficam com pequenas doenças por causa da poluição lateral – que vai mais longe do que se imagina – e eles são em grande número. Essas pequenas doenças que se prolongam por uma vida toda, e uma vida que não é encurtada, é que formam o conjunto de gastos terríveis para o setor público. Gastos estes que, não raro, impedem o Estado de investimentos básicos em outros setores da área social, inclusive educação.
No mundo todo é assim. No mundo todo, a mão racionalizadora e civilizadora da modernidade chegou ao que, se o marxismo ainda estivesse em moda, alguns diriam que é o seu momento dialético. Pois o Estado, que um dia fomentou o cigarro para recolher impostos, agora tem de requisitar da democracia o aval para proibi-lo, dando um passo em favor de um mundo clean.
Sem adolescentes de plantão
Mas, sendo ou não por fatores econômicos que vamos nos civilizar, isso pouco importa. O que importa é que vamos nos civilizar, ainda que aqui e ali sobrem os que já estão sendo chamados de ignorantes em todo o canto – não são os que querem fumar, mas os que querem fazer os outros fumarem ou, então, fazer gracinha tola escrevendo que a lei antifumo é ‘fascista’. Nesse caso, voz do povo é voz de Deus mesmo – são de fato ignorantes, todos estão assim os qualificando. Há desse tipo em todo lugar. Um ou outro elemento marginal da sociedade encontra nesse tipo de protesto a forma de virar adolescente novamente e, então, reclamar do papai – o governador – a ‘falta de liberdade’. Essa interminável adolescência às vezes pega o pequeno cérebro de intelectuais sem causa.
Do mesmo modo que a população medieval foi sendo educada – inclusive por leis duras – a não cuspir no chão das casas e a não soltar flatos em público, a nossa população irá aprender a fumar em lugares corretos. Será que no passado tivemos alguns intelectuais que, por seu falso libertarismo, tentaram proteger os que soltavam flatos em público? Nem mesmo Erasmo de Roterdã, que realmente era indisciplinado, tentou isso. Ao contrário, ele logo endossou os manuais de boas maneiras, quando estes passaram a implicar com o ânus alheio. Naquele tempo, os intelectuais não foram ignorantes. Agora, também não são. Os que possuem de fato alguma familiaridade com livros e com o mundo cultural, os que saíram de casa e andaram pelos novos lugares regrados pela lei antifumo, gostaram do que viram. Só os que colocam a pena a serviço de outros, para fomentar a briga partidária em época de eleição, é que estão na vara de condenar a lei antifumo.
Mas o problema mesmo é que o reverso da medalha irá aparecer logo. E isso não será ruim. Nossa população está vivendo mais e o Brasil já é um país de velhos. Com a lei antifumo, mais cedo do que se imagina vamos ter muitos velhos entre nós – e saudáveis. Isso vai exigir um Estado cada vez mais tendente ao welfare state. Pois teremos uma legião enorme de aposentados querendo pensão. E sendo saudáveis, irão até poder reivindicar em movimentos sociais e de rua tais direitos. Além disso, irão voltar ao mercado de trabalho e isso exigirá do país uma capacidade inaudita de gerar empregos para os mais jovens. Quando isso ocorrer, o que não vai demorar, ninguém mais se lembrará daqueles que serviram de lacaios à santa indústria do tabaco. Os tempos serão outros. Todos estarão empenhados na luta entre os que irão querer a redução do tempo de aposentadoria e os que irão não só querer seu aumento, mas a sua ampliação com possibilidades de maiores salários. Esta, sim, será uma boa briga. Uma briga sem os adolescentes de plantão.
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Filósofo, São Paulo, SP