Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Aos jornalistas de Metrópolis

A jornalista Ana Paula Padrão fechou uma matéria sobre a situação dos trens paulistas referindo-se à ‘selvageria’ dos usuários. Tal expressão explodiu na minha cabeça. Primeiro lembrei-me de minha pequena ‘História da Elite Bestial‘, que pretendo transformar em livro de 1.000 páginas. Logo depois, revi mentalmente todo o filme Metrópolis. Na anti-utopia de Fritz Lang, a população caminha apertada e mecanicamente nos subterrâneos da cidade enquanto a elite desfruta de amplos espaços e jardins suspensos nos mega-edifícios empresariais e governamentais, para os quais é transportada por maravilhosas máquinas voadoras.

São Paulo, neste princípio de século 21, assemelha-se bastante a Metrópolis. Mas a culpa das coisas serem como são certamente não pode ser atribuída à população governada ou à ‘selvageria’ dos usuários de trens (como quer a jornalista referida). Se existe culpa, esta só pode ser da elite governante que, muito preocupada com coisas menos importantes e mais mesquinhas (podemos bem imaginar quais são estas), não investiu na ampliação e melhoria dos sistemas de transporte público da cidade.

Quando fazem a cobertura jornalística do trânsito e das enchentes a partir dos helicópteros das redes de TV, muitos jornalistas têm uma rotina semelhante à do prefeito, do governador e dos mega-empresários paulistas. São Paulo-Metrópolis também tem milhares de maravilhosas máquinas voadoras que chegam e saem de suas brilhantes torres envidraçadas. Mas não tem um transporte público decente para a população trabalhadora.

Pensamento e ação

Na São Paulo-Metrópolis, os trabalhadores que ajudam a produzir riqueza da cidade (leia-se David Ricardo e outros economistas) ou que produzem toda riqueza (Karl Marx e seus seguidores) são obrigados a se apertar nos ônibus, trens e metrôs considerados maravilhosos por administradores públicos e jornalistas. Administradores públicos que usam transporte popular somente em época de eleição e jornalistas que não usam ou nunca usaram essas ‘coisas de gente pobre’.

O que os aéreos jornalistas televisivos pensam, realmente não sei. Mas sei que os trabalhadores não usam trens excessivamente lotados porque gostam. Os agentes da ‘selvageria’ (para usar o vocabulário jornalístico-televisivo criado por Ana Paula Padrão) usam trens lotados porque precisam, porque não podem ter carro próprio ou porque não podem pagar outro tipo de transporte. Imagino que os trabalhadores paulistas usam trens, ônibus e metrôs porque não são transportados pelos helicópteros pagos pelos empresários, grupos-empresariais e redes de TV. Helicópteros, aliás, que são pagos com dinheiro dos agentes da ‘selvageria’ e usados exclusivamente pela elite governamental.

Metrópolis, o filme, é uma anti-utopia. Tal como está organizada (trabalhadores nos subterrâneos, dirigentes nas torres de cristal, sem que ocorra qualquer contato entre os dois grupos), a cidade aparentemente funciona muito bem. Mas rapidamente as coisas desandam, quer porque o filho do administrador descobre a verdadeira natureza daquela civilização, quer porque para manter a ordem a ciência se une à perversidade governamental.

Fritz Lang usou o cinema para combater simbolicamente a desumanização no mundo moderno. Metrópolis é um manifesto pictórico cuja conclusão é bastante ingênua: o pensamento e a ação devem ser mediados pelo coração. Isto funciona bem ao nível do filme, da simbologia e da ficção. Mas no mundo dos fenômenos precisamos de algo mais. Precisamos de sanção.

Penas alternativas

O uso de adjetivos ofensivos é crime. Os crimes de racismo prescritos na Lei Especial e os crimes contra a honra do Código Penal podem ser cometidos por qualquer cidadão, em qualquer situação, com o uso da palavra escrita ou falada. A vítima pode ser uma pessoa determinada, mas pode ser também uma coletividade ou grupo social, cultural, racial, religioso etc.

No Brasil os jornalistas têm liberdade de opinião garantida pela CF/88, mas não estão acima da Lei nem fora do alcance dos tribunais. Portanto, deveriam tomar mais cuidado com a linguagem que usam. Até o presente momento, o Ministério Público (que é o titular da ação penal em muitos casos) tem sido excessivamente tolerante com os jornalistas. Mas nada impede que os promotores sejam mais rigorosos no futuro – algo que seria bastante desejável, a bem da evolução do linguajar jornalístico brasileiro.

E já que estamos tratando deste assunto, confesso que não me parece ser necessário trancafiar os jornalistas que usam expressões ofensivas para referir-se à população, aos trabalhadores, aos presidiários, aos não incluídos de todas as cores e credos. Nestes casos, o Judiciário bem que poderia adotar duas penas alternativas bastante instrutivas: a obrigação de usar transporte público por tempo determinado; a obrigação de frequentar aulas de antropologia e sociologia para aprender a lidar com os diversos grupos sociais sem usar linguagem discriminatória e ofensiva.

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Advogado, Osasco, SP