Usar uma mulher – negra, de meia-idade e muito bem-sucedida – foi a arma do governo de George W. Bush para tentar manipular a imprensa. No momento em que congressistas negros acusaram o governo americano de demorar no socorro à população de New Orleans (67% são negros), ela apareceu em público.
Num tailleur amarelinho de corte impecável, cabelos bem penteados, colar e brincos de ouro combinando, a pós-graduada intelectual Condoleezza Rice se apresentou à imprensa para seu show de solidariedade. Mas, por sorte, os jornalistas não se deixaram enganar. Questionaram o motivo da visita – já que seu trabalho como Secretária de Estado é voltado para as relações exteriores. Perguntaram por que o governo demorou tanto a agir – se foi mesmo por preconceito – e quiseram saber até o que adiantaria uma visita dela à região atingida, passados tantos dias do início da tragédia. E completaram a entrevista acusando o governo de ter recusado auxílio estrangeiro.
Sem perder a segurança e sem desmanchar o sorriso contido, a secretária de Estado respondeu com frases feitas e de efeito (‘sou do Sul e me identifico com a população’), e encerrou a entrevista rapidamente, antes que ficasse sem ter o que dizer.
Voz do governo
O que a Condoleezza Rice conseguiu demonstrar – nessa entrevista, em suas viagens internacionais e até em sua biografia – é que o que diferencia as pessoas não é o sexo, a raça ou a idade. Enquanto aparecia em público tentando limpar a barra do seu chefe, de quem poderá ser a sucessora, pessoas da mesma origem, idade, sexo e raça eram vistas no noticiário chorando e pedindo um copo de água, um prato de comida. A diferença? A conta bancária.
A medíocre encenação de Condoleezza tentando demonstrar emoção e solidariedade talvez tenha tido utilidade: mostrar que a imprensa pode – e deve – ser implacável quando se usa a condição de minoria (mulher e negra) para enganar a opinião pública. E que não se pode acreditar que o fato de ser mulher torna os políticos melhores.
A atuação dos repórteres americanos – que trataram a secretária de Estado apenas como um político que faz parte de um governo mais preocupado com seus interesses do que com seus cidadãos – poderia servir de exemplo para nós. A tentativa de Condoleezza de comover a imprensa com seu passado de sulista que venceu os preconceitos não convenceu ninguém. Talvez porque, ao contrário dos políticos brasileiros, Condoleezza não tenha derramado uma lágrima enquanto falava da grande tragédia que atingiu seus antigos vizinhos.
Naquele momento, Condoleezza não era mulher, muito menos negra. Era uma representante do governo. E foi interrogada como tal.
Tratamento igualitário
Um tratamento bem diferente do que as autoridades brasileiras recebem da imprensa, quando convocam uma coletiva, como aconteceu com o ministro Antonio Palocci ao explicar o caso do lixo em Ribeirão Preto. A coletiva, conduzida com maestria pelo ministro, durou o tempo que ele achou necessário. E as perguntas, em sua maioria, ficaram no terreno da obviedade.
Essa diferença se percebe também em outros casos, como no escândalo que envolve a primeira-dama Marisa Letícia, acusada de gastar fortunas por mês com suas despesas pessoais – cabeleireiro, roupas, vaidade, enfim. Fortunas pagas com cartão de crédito corporativo do governo federal.
E a imprensa deixa barato. Registra o fato como mais uma notícia entre as tantas envolvendo a corrupção do governo, e esquece o assunto. Como se fosse uma notícia menor o fato de a primeira-dama gastar por mês o dinheiro que em seu passado recente significaria um grande prêmio na loteria. Ou será que a imprensa, por medo de ser taxada de preconceituosa, acha melhor poupar dona Marisa e seus milionários gastos pessoais?
Marisa, Marta Suplicy, Condoleezza e tantas outras mulheres poderosas deveriam merecer da imprensa o mesmo tratamento. Respeito se fizerem uma coisa boa e questionamento quando erram. Seria uma forma de mostrar que a imprensa não tem preconceitos e reconhece a igualdade entre homens e mulheres – não importa sua idade, cargo ou situação econômica.
******
Jornalista