Friday, 15 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Aqui o passado é presente

Quando estava na faculdade de Letras, uma das lições mais proveitosas que aprendi foi sobre determinismo linguístico. Segundo essa corrente, as sociedades têm sua cultura determinada pela língua que falam. Para qualquer aluno, a simples ideia de uma língua viva descortina o universo de pesquisa de campo e leitura que o estimula a observar os fenômenos da língua como dados sociológicos ou antropológicos. Um dos teóricos dessa corrente foi Marshall McLuhan, filósofo e educador canadense, guru citado por muitos linguistas, que até participou como ator no filme Noivo neurótico, noiva nervosa, de Wody Allen, fazendo papel de si mesmo e criticando seus supostos leitores.

Em um de seus livros, Revolução na Comunicação, McLuhan menciona características da língua de uma tribo australiana de aborígenes, por exemplo, que não tinham em seu léxico a palavra ‘árvore’, mas nomeavam cada uma que encontravam com substantivo próprio, de forma que cada árvore representava uma pessoa, com suas necessidades e individualidades. A essa conclusão, acrescento minhas observações sobre algumas peculiaridades da língua portuguesa, moldura que nos caracteriza e aprisiona. Não vou cair no engodo de afirmar que só brasileiro ou português sentem saudades, pois essa palavra só existe na nossa língua. Em outros idiomas, como no inglês miss you, há similares e o sentimento que mói o coração pela ausência do outro é igual em qualquer lugar do mundo, mas particularidades de língua podem, sim, determinar a cultura – e o primeiro índice é a literatura.

Passado que poderia ter acontecido

Sabe-se que o povo português sempre foi muito saudosista, voltado para seus heróis e amores do passado. Basta ler a joia da coroa da literatura portuguesa, Os Lusíadas, de Camões, que conta os feitos de grandes navegadores do passado. Outros exemplos? Eça de Queirós: em O Primo Basílio, Luísa cede a todas as chantagens da empregada Juliana para que seu marido Jorge não descubra as cartas de amor que escreveu ao primo.

Leia Machado de Assis. O que é Dom Casmurro, além de uma reflexão de um amor do passado que se consumiu no ciúme? E Memórias Póstumas de Brás Cubas? Um homem que já morreu contando seu passado quando era vivo. Mais exemplos: José Saramago, que compôs um Memorial do Convento voltado para eventos e aventuras ocorridos no século18; Fernando Sabino, que conta um encontro marcado que não aconteceu. Na poesia, os românticos são o melhor exemplo: Casimiro de Abreu, em Meus Oito Anos: ‘Oh, que saudades que tenho/ da aurora da minha vida/ da minha infância querida/ que os anos não trazem mais.’ Embora crítico do romantismo, o parnasiano Olavo Bilac também só usa os verbos no passado, como em Nell Mezzo del Camin:

‘Cheguei. Chegaste. Vinhas fatigada

E triste, e triste e fatigado eu vinha.

Tinhas a alma de sonhos povoada,

E a alma de sonhos povoada eu tinha…’

Por isso, resolvi fazer uma investigação das razões dessa melancolia introjetada nas veias, típicas não só do português, como do brasileiro. Compartilho com você algumas dessas descobertas deterministas.

Na nossa língua, para falar no pretérito há quatro tempos no modo indicativo: o pretérito perfeito, que é um passado terminado: amei e ponto; o pretérito imperfeito, que é o passado ainda recorrente: amava e amava e amava; o pretérito mais que perfeito, que designa um passado antes do passado: amara a mulher que se foi; e o futuro do pretérito: ele amaria aquela mulher que o fez de trouxa, isto é, até no futuro há um gosto de passado que poderia ter acontecido!

Aproveitar o passado para viver o presente

No modo subjuntivo, também há o pretérito imperfeito, condicional: Se eu amasse! Se eu fizesse! E as formas nominais? O particípio ‘amado’, que sempre forma um composto com verbo auxiliar: fui amado, era amado, mais corrente na linguagem oral. O gerúndio, forma amaldiçoada por alguns, mas uma expressão clássica quando bem empregada, como o fizeram Camões, Vieira e muitos outros, dá um toque de passado que ainda persiste no presente, um jeito brasileiro de protelar as atividades: estou trabalhando até dar a minha hora, estou amando até não sei quando.

Ao todo, portanto, são sete as possibilidades de expressão pretérita. Para o futuro, apenas dois tempos: o futuro do presente: eu amarei esta mulher; este um futuro seguro, ancorado no agora, e só este, pois no subjuntivo o futuro é incerto: Quando eu amar…vou me entregar totalmente. Não é de surpreender a ideia sebastianista, o messianismo farisaico, o arrependimento tardio, a suposta falta de memória traduzida na reinvenção da roda, a necessidade do pai salvador e da mãe mandona, arquétipos da cultura dos países lusófonos.

Como falei anteriormente na literatura em língua portuguesa, voltada para o passado por razões até gramaticais, em contrapartida devo reportar-me à literatura em língua inglesa, que se caracteriza pela pouca flexão verbal. Há uma profusão de publicações de literatura de ficção científica, fantástica e de suspense e terror, em autores como Isaac Asimov, Aldous Huxley, H.G Wells e muitos outros. Esses gêneros, voltados para o futuro, têm pouca ou nenhuma popularidade por aqui. Os editores e escritores de ficção científica, por exemplo, têm que bancar do próprio bolso a publicação de contos, coletâneas, promover concursos e ainda assim sofrem no mercado comercial. Sem ressentimentos, é só constatação de que o passado está na nossa alma e é o nosso negócio na literatura e na vida; o próximo passo é aproveitá-lo para viver o presente e projetar o futuro. Quem viver, verá.

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Jornalista e professora, São Paulo, SP