Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

As causas que a mídia não contempla

Em meio à correria para o fechamento das edições, pouco nos damos conta da lacuna deixada, após a formação acadêmica, em relação aos ‘efeitos das causas’ que geram fatos e, assim, notícias. Em muitos casos, as reportagens, mais trabalhadas e elaboradas, camuflam uma pseudo-análise dos fatos, ora incompreensíveis ora incompreendidos. Da redação do jornal Folha do Vale, no interior do Ceará, só após alguns dias bateu-me uma vontade incontida de voltar algumas matérias atrás e analisar os fatos nelas transportados mais atentamente. Um deles, bem característico dos maiores núcleos urbanos, me chamou a atenção, na narrativa que fiz e se segue.

Segunda-feira, 27 de junho, 10 da manhã. Na Folha, estamos na dúvida sobre o que entrar e/ou ser capa. Ainda com o café da manhã de já havia duas horas, meu estômago roncava. Ligo o rádio (quase sempre o primeiro a saber de tudo) para ver o que tirar de proveito.

– Atenção, Tabuleiro… Atenção, Povo de Tabuleiro!

‘Ele viu, ele viu’

Parecia coisa de filme – em que os mocinhos ligam o rádio exatamente no momento em que se anuncia a procura de algum abominável homem dos asfaltos, mas aconteceu.

Era o radialista, anunciando um fato que só teria desfecho mais de 10 horas depois, quando já era noite: ‘A polícia acaba de encontrar um corpo enterrado numa casa’.

Sem muito rodeio e com muita fome, deixei imediatamente tudo o que estava fazendo, corri atrás da matéria, atrás da polícia. De Limoeiro sigo rumo a Tabuleiro do Norte, da morte. O tal corpo ficava num tal quintal dentro de uma tal casa bem no centro da cidade. Local interditado, apresento-me como repórter. De início, não me deixaram tirar foto até que a perícia chegasse, o que só ocorreu cinco horas depois. Mas já se via a arcada dentária humana na boquinha de um buraco iniciado. Alguém estava lá.

Multidão na porta, quando saio na calçada todos me olham. ‘Ele viu, ele viu’, devem ter dito. Eu os via, eles me viam; e os policiais viam TV na sala da casa da vítima – não tinham nada a fazer a não ser esperar a tal da perícia chegar. Estrelando em Sessão da Tarde estava Roberto Benigni, em A vida é bela, que ganhou Oscar de melhor filme estrangeiro desbancando Central do Brasil num ano desses. Enquanto isso, o centro da cidade formigava.

A narração do réu

Enquanto ninguém chegava, comecei a redigir a matéria que deveria estampar os jornais do dia seguinte. Procurava (e não encontrava) certa frieza e palavras para descrever o que dois irmãos tinham feito: matado por asfixia em Fortaleza um homem de 27 anos, arrancado-lhe a cabeça, esquartejado todo o corpo, retirado o sangue e as vísceras para transportá-lo, sem chamar atenção, ensacado num bagageiro de ônibus numa caixa de computador e, chegando a Tabuleiro, enterrá-lo no quintal de casa. Meu estômago ainda remoia. Primeiro era fome, depois foi nojo. Estava diante de um ato macabro.

A vida é bela já chegava ao fim, quando os nazistas eram aniquilados e o menino judeu que sobrava encantava-se diante de um tanque de guerra – ‘brinquedão’. Enfim, aparece a perícia e, com a equipe, um dos irmãos que já havia confessado o crime. Diante do ‘buraco da maldade’ (aqui usado em sentido literal mesmo), Jardiê confessava e minimizava sua participação no crime do qual seria mais culpado o irmão, Jarliel: ‘Me senti foi mal quando comecei a cavar o buraco, sempre tive a vida limpa, não sou disso’, alegou. Fiz perguntas incisivas ao meliante, que me olhava incisivo. Motivo do crime: R$ 300 restantes de outros R$ 2.500 emprestados pela vítima aos irmãos.

A narração do réu primário é acompanhada ao fundo pelo trabalho dos policiais. A fedentina toma conta do local quando a escavação recomeça e a ossada é retirada. Já era noite e as muriçocas não deixavam ninguém quieto, ansiosas pelo ‘banquete’ escondido. A ‘monotonia’ impera até a retirada total da ossada… e de todos.

Com as dúvidas do leitor

Saio com a sensação (e só isso) do dever de repórter cumprido, mas não de ser humano. Tentava, mas não compreendia o que levava dois homens a matarem (e dessa maneira) outro. Loucos? Acho que não. Cruéis. Mesmo como futuro cientista social que pretendo ser, não enxergo nenhum discurso social que justifique (talvez explique) tal atitude. Os crimes macabros deixam de ser cada vez menos atos isolados. Hobbes não imaginaria que em pleno século 21 o homem fosse tão literalmente ‘lobo do homem’. A esse fato, seguem-se outros casos, separados apenas por alguns quilômetros e horas, de pessoas mortas a fogo, outra a machadadas na cabeça e ocultada na fossa de casa etc.

E o fosso da maldade se aprofunda, e dignidade e amor ao próximo são cada vez mais raros, talvez enterrados em algum buraco a sete palmos… Ou numa fossa de lama e muita merda. É meia-noite quando chego em casa. Não sinto mais fome.

Às vezes, as notícias passam tão rápido quanto as análises, imediatas e sem aprofundamento. Não vivemos num Oriente Médio, mas talvez aqui o universo cultural seja mais conflituoso. Se não podemos expor respostas, pelo menos as nossas dúvidas evidenciadas serão de grande valia – coincidentemente, sãos as mesmas dúvidas do leitor.

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Jornalista, estudante de Ciências Sociais da Universidade Estadual do Ceará e cronista do site Blogdomel.zip.net