A troca da apresentadora Fátima Bernardes por Patrícia Poeta na bancada do Jornal Nacional ameaça a dividir a sociedade brasileira. O Brasil que assiste aos telejornais noturnos não está muito antenado na refundação da Europa reclamada por Nicolas Sarkozy, na bomba-relógio instalada nos bancos centrais europeus e americano, no que se passa na Síria e Egito ou no esfacelamento do capitalismo especulativo. Apesar da conversa mole de “convergência de conteúdos” na mídia digital e eletrônica, o que interessa mesmo é a capacidade de sedução das (dos) âncoras. O jantar sem Fátima Bernardes poderá prejudicar a harmonia familiar ou a digestão em milhões de lares pelo país afora.
O mundo tem dificuldades para perceber que os trens-bala não correm com a mesma velocidade. Fátima Bernardes é imensamente mais importante do que Angela Merkel, dependendo da esfera onde atua. É isso que nossos comunicadores, antropólogos, empresários e políticos devem reconhecer. O mundo real está perdendo toda a sua importância, vale o virtual.
O conceito de duas velocidades torna-se obrigatório, universal, a aceleração deixou de ser uma medida absoluta, relativiza-se e deve tornar obsoletos todos os rankings e tabelas comparativas. A admissão de duas velocidades tornará possível compatibilizar a globalização da economia com as necessidades regionais de crescimento.
Processo lento
Nos anos 1990, uma Europa em duas velocidades teria evitado o colapso de sistemas sociopolíticos precários (como os da Grécia ou Portugal) que viveram duas décadas de ilusões de prosperidade e agora, de ressaca, são obrigadas a defrontar-se com antigas realidades.
O autoengano persegue o ser humano desde que foi expulso do paraíso, é a sua desgraça. Clérigos e teólogos ofereceram uma forte contribuição à sua consolidação ao condicionar um eventual retorno ao Éden à estrita observância de certas normas de conduta. A lendária figura de Job – tão temente ao Todo Poderoso e não obstante tão castigado – desmonta a fantasia da redenção pela fé.
A entusiástica reação mundial à primavera árabe é um caso clássico de autoengodo coletivo, quimera de velocidade única: a vitória eleitoral de partidos islâmicos onde agora se realizam eleições escancara a inviabilidade de uma democracia secular instantânea e completa, como se pretendia no início da derrubada dos déspotas de plantão.
O kemalismo, de Mustafá Kemal Ataturk, levou 89 anos para converter a Turquia num Estado de Direito, mesmo assim ma non troppo – o número de jornalistas presos é recorde e o sufoco da nação curda, tragédia étnica.
O que falta
O Brasil demorou sete décadas até encarar o diagnóstico de Stefan Zweig de que é o país do futuro. Conformado com o vaticínio, corre o risco de desperdiçá-lo nas salas de aula onde se trava a dramática batalha da educação. A presidente Dilma Rousseff insiste no trem-bala para exibi-lo nos eventos esportivos de 2014 e 2016, mas um país não ganha o respeito internacional pisando no acelerador das obras faraônicas, há outras velocidades a serem consideradas. Queimar etapas não é a melhor estratégia para o estabelecimento de um marco civilizatório consistente. Isto é o que conta: nenhuma nação irrompe no cenário internacional sem o lastro moral e intelectual.
O famoso Abelardo Barbosa, o Chacrinha, legou um axioma ainda insuficientemente digerido: quem não se comunica, se trumbica. Nós nos comunicamos – e como! – e nos trumbicamos em igual proporção. O diálogo nacional faz-se na base do alarido e da algazarra, não produz sedimentos, sequer uma frase ou palavra-chave.
Fátima Bernardes e Patrícia Poeta são igualmente competentes e deslumbrantes – o que falta nas telinhas à hora de jantar é meia dúzia de chatos capazes de lembrar que o trem atrasou.